Vegetação exclusivamente brasileira vem sendo atingida por empreendimentos de energia eólica e solar
A Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro, é um dos mais eficazes no chamado sequestro dos gases do efeito estufa. Em compensação, o bioma tem sido um dos mais atacados por empreendimentos de energia renovável, considerada uma fonte limpa. A contradição verde demonstra que estes modelos alternativos, organizados em torno de grandes empreendimentos, têm contribuído para destruir um dos biomas mais importantes para o país.
Um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) das Ciências Agrárias comparou duas bases de dados sobre emissões e remoções de gases do efeito estufa nacionais e comprovou que a Caatinga foi responsável, em alguns anos, pela captura de 50% de todo gás carbônico do país.
O desempenho da vegetação é melhor em períodos de chuva, que são poucos na região semiárida. Nas temporadas de chuva acima da média para a região, a vegetação responde com muito mais intensidade o processo de captura. Nas temporadas de estiagem, o bioma diminui a capacidade, mas ainda consegue atingir um desempenho surpreendente e, dessa forma, se destaca na função de capturar os gases poluentes da atmosfera, com uma performance até melhor do que a de biomas mais celebrados nestes serviços ambientais, como a Amazônia, por exemplo.
O levantamento, realizado pelo pesquisador e mestrando em Agronomia Luís Miguel da Costa em parceria com o professor e doutor em Física Newton La Scala Jr., analisou o período de 2015 a 2022 e foi publicado na revista Science of the Total Environment. Os autores afirmam que o diferencial da Caatinga está na forte resposta ao aumento da disponibilidade de água durante períodos de chuvas mais intensas.
A pesquisa levou em consideração a chamada fluorescência da clorofila. Ela é um importante indicador que atesta a atividade fotossintética das vegetações. Quanto mais elevado este indicador, segundo os pesquisadores, maior é a capacidade de sequestro de carbono pela vegetação.
A emissão de gases do efeito estufa por causa das ações humanas tem sido a principal responsável pelas mudanças climáticas no mundo. No Brasil, ao contrário das tendências dos países do Norte Global, a principal fonte de emissão está na chamada mudança no uso da Terra ou no desmatamento, queimadas e ações humanas, que alteram o uso daquela região. O avanço da agropecuária corresponde a 70% das emissões nacionais, combinando desmatamento e emissão do gás metano.
O professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia, Washington Rocha acompanha o trabalho de duas doutorandas que examinam a performance da Caatinga no sequestro do carbono. A pesquisa ainda não foi concluída, mas ele antecipa, de forma ainda preliminar, que as evidências até aqui confirmam esse comportamento da vegetação.
“O que a gente vem comprovando é que, ao contrário do que se pensava antes, a Caatinga tem, sim, essa capacidade de interagir na captura de carbono, especialmente em condições climáticas mais favoráveis. Quando você tem períodos com maior umidade, os processos ecossistêmicos no bioma são muito ativos e acelerados, chegando a se comparar com biomas mais protegidos, como a Amazônia. Já em períodos de seca, a Caatinga, se ela tem proteção natural, adota estratégias para se manter viva.”, explica
Outro estudo, elaborado por uma equipe de pesquisadores do Observatório da Caatinga, vinculado à Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, concluiu que áreas preservadas da vegetação conseguem devolver mais vapor de água para a atmosfera e capturar mais gás carbônico ao longo do ano. O estudo afirma que a preservação da Caatinga é fundamental para assegurar procedimentos essenciais da natureza, como a oferta de água, a regulação do clima e o sequestro de carbono.
“Por muito tempo, as pessoas achavam que a Caatinga era ‘morta’. Temos um período chuvoso, em que vemos tudo verdinho, pássaros cantando, animais circulando e, depois, um período de seca. Isso faz parte da sua dinâmica biológica, da alta dependência da pluviosidade. Esse estudo da equipe da Unesp veio para corroborar o que já era certo: a alta produtividade desses ambientes e a sua enorme capacidade de retenção de gases do efeito estufa, especialmente o gás carbônico”, explicou o biólogo João Damasceno, que integra o comitê técnico-científico do projeto Seridó Vivo.

Monocultura da “energia limpa”
Apesar de ser um excelente sumidouro de carbono, a Caatinga vem sendo alvo constante de devastação. De acordo com os dados de relatório do MapBiomas, o bioma perdeu, nos últimos 40 anos, 9,25 milhões de hectares. A Caatinga ocupa uma área de 86,2 milhões de hectares, o que corresponde a pouco mais de 10% do território nacional.
O principal agente causador do desmatamento da Caatinga segue sendo a agropecuária. Mas outro vetor tem se destacado na última década de forma contraditória: o avanço da energia renovável, considerada uma fonte limpa. Grandes empresas multinacionais têm acelerado a construção de parques eólicos e usina solar na região, alterando condições ambientais e gerando impactos sociais severos.
“Historicamente, os principais vetores eram a extração de lenha e carvão para polos cerâmicos [Pernambuco, Ceará, Bahia] e para as metalúrgicas de Minas Gerais. Hoje, o que identificamos é a pressão da agropecuária — especialmente na fronteira oeste, próxima ao Matopiba — e das áreas irrigadas, como o Vale do São Francisco. Nos últimos três, quatro anos, começamos a detectar outro padrão: o avanço da infraestrutura para energias renováveis, como parques eólicos e, mais recentemente, usinas fotovoltaicas. No MapBiomas, conseguimos mapear essas áreas com inteligência artificial e identificamos casos em que houve desmatamento de vegetação nativa para instalar placas solares. Uma contradição, já que poderiam ter sido escolhidas áreas já degradadas.”, explicou o professor Washington Rocha.
De acordo com dados do MapBiomas, 62% das usinas fotovoltaicas (energia solar) do Brasil estão instaladas na Caatinga. Mais de 21 mil hectares do bioma estavam ocupados, em 2024, por esse tipo de empreendimento. O estado da Caatinga com mais usinas solares no país é Minas Gerais, seguido por Bahia e Rio Grande do Norte. As áreas de formação savânica são as mais convertidas para a instalação das grandes usinas.

Esse avanço tem sido criticado por pesquisadores e movimentos populares, diante do impacto social e ambiental desses grandes empreendimentos. No caso da energia solar, a instalação das usinas, segundo estudiosos, demanda desmatamento e até contaminação do solo para evitar o renascimento da vegetação, com o objetivo de facilitar a instalação das placas solares.
“Você desmata a floresta que, mesmo em época de seca, sequestra duas toneladas e meia de carbono por hectare/ano. Você tira, joga veneno, contamina nascentes, para colocar uma tecnologia com o discurso hegemônico da descarbonização da economia. É uma contradição”, aponta a turismóloga Moema Hofstaetter, integrante do Observatório da Energia Eólica da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“No caso das usinas solares, além do desmatamento, temos erosão do solo acentuada, que pode afetar áreas vizinhas, como lagoas e unidades de conservação. Há também o chamado ‘efeito lago’: algumas aves confundem as placas com lâminas d’água e colidem ao tentar pousar. Outras sofrem queimaduras ao encostar nas placas superaquecidas. Temos também o aumento da presença de abelhas africanas em detrimento de espécies nativas. Isso muda toda a dinâmica ecológica”, aprofunda o biólogo João Damasceno.
Já o professor Washington Rocha, do MapBiomas, relembra o risco de desertificação.
“Se você desmata, já há um impacto direto no ecossistema. E lembremos que a Caatinga é um bioma com baixo percentual de áreas protegidas. Além disso, ela é frágil: solos com vulnerabilidades naturais, regime de chuvas irregular. Se a superfície está exposta, aumentam os processos erosivos, a perda de nutrientes e até riscos de desertificação”, conclui.

Excesso de energia e adoecimento
Além do impacto ambiental, o avanço da energia renovável no Nordeste, em especial em áreas de Caatinga, também promove impacto social. Pesquisadores e movimentos populares denunciam casos de adoecimento, assédio financeiro e acidentes em áreas próximas aos parques de energia.
“É uma grande contradição. Você devasta um bioma exclusivamente brasileiro, que já tem só metade ou menos da metade preservado, para botar um empreendimento que, na grande maioria, tem gerado muitas contradições nos territórios. Por quê? Porque os contratos são abusivos, porque não tem diálogo na construção, porque não respeita, não faz consulta livre, prévia e informada, apesar de ser um requerimento da OIT”, critica Carlos Magno, do Centro Sabiá, entidade que atua com comunidades da Caatinga.
Ele ressalta que os novos empreendimentos têm sido feitos com algumas exigências, mas os anteriores foram construídos sem qualquer controle. “Isso gera problema de saúde mental nas famílias, problema de todo tipo que você possa imaginar”, denuncia Magno.
Todo esse investimento nas chamadas fontes limpas tem sido colocado em dúvida nas últimas semanas. Isso porque o Operador Nacional do Sistema Elétrico(ONS) tem desligado alguns parques porque há um excesso de produção e pouca demanda de energia. Esse excesso, segundo a ONS, pode sobrecarregar o sistema e causar acidentes.
“Esses parques devastam o ambiente para gerar uma energia ‘limpa’, mas que agora, nesse momento, nem está sendo necessária. Os caras estão desligando os parques porque não precisam da energia. É uma contradição imensa”, aponta Magno.
“O discurso é de progresso, de energia limpa, mas o resultado é perda de biodiversidade, perda de modos de vida, de cultura, de água, de comida”. conclui a pesquisadora Moema Hofstaette.

Síndrome da turbina eólica
A população que vive próxima aos parques eólicos têm relatado graves problemas de saúde. De acordo com estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade de Pernambuco, os moradores dessas comunidades têm desenvolvido a chamada “Sindrome da Turbina Eólica”. Ela está associada a sintomas como insônia, irritabilidade, dores de cabeça e ansiedade, provocados pelo ruído constante e pelos infrassons das torres.
De acordo com a pesquisa, em 2023, 70% dos 105 entrevistados afirmaram querer se mudar devido aos problemas. O estudo aponta ainda que 66% usam medicamentos para dormir, 54% relataram perda auditiva e 31% sofrem com o incômodo visual das pás girando, o chamado efeito estroboscópico. Além disso, 41% mencionaram alergias e dermatites causadas pela poeira espalhada pelas hélices.
“Uma agricultora me disse: ‘Carlos, quando eu vou a Caruaru ou a Garanhuns, eu saio daqui, mas continuo escutando o barulho dentro da minha cabeça. Demoro meses para isso sumir’. Não há um estudo ainda nesse sentido, mas o impacto pode ser comparável ao do cigarro. Quando se comprovar, já terá feito um estrago enorme. Vi essa agricultora com a filha pequena no colo e pensei: ‘Essa criança já está crescendo sob esse efeito’. É uma desumanidade tremenda”, relata Carlos Magno, do Centro Sabiá.
O que dizem as empresas
As associações de representação das empresas de energia renovável no Brasil afirmam que o impacto ambiental das atividades é muito baixo e que o setor já aplica iniciativas de compensação ambiental.
A presidenta-executiva da Associação Brasileira das Empresas de Energia Eólica (ABEEólica), Elbia Gannoum, explicou que a indústria de energia renovável, especificamente a eólica, tem baixo impacto no meio ambiente e zero emissão de carbono, se posicionando como uma importante frente na transição energética no país.
“Não existe nenhuma atividade econômica que não tenha impacto ambiental. A grande discussão não é se há impacto ou se não há impacto. A discussão é qual é o grau de impacto que nós temos para determinadas atividades. E, no caso das energias renováveis, elas têm zero emissão. Portanto, ela não tem esse impacto de CO2, mas elas têm a questão de uso das áreas que são determinadas para produção de energia”, apontou.
“A energia eólica é a fonte de menor impacto de toda a cadeia de produção e quando instalamos esses parques eventualmente em regiões que tenham algum bioma — e aí cita-se a Catinga, que talvez seja mais comum — nós temos trabalhos de redução de impacto, seja na hora que a gente tá construindo o parque, seja depois”, completou.
Sobre o avanço dos empreendimentos sobre áreas de Caatinga preservadas, a presidenta-executiva afirmou que o impacto da eólica é menor do que o da usina solar.
“Se você observar os estudos, a preocupação é muito maior com a energia solar do que com a energia eólica, porque a energia solar é um painel que fica em cima ali do solo. Quando você coloca aquele painel, você realmente neutraliza aquela área, aquela área não pode mais ser recuperada. Ela vai ficar degradada. Aquela área que a energia eólica utiliza é uma área muito pequena. Então, em geral, a gente faz as compensações ambientais que são muito menores e nosso impacto acaba sendo muito reduzido.”
Questionada sobre os episódios de desligamento dos parques, Gannoum afirmou que estes casos ocorrem por causa da superoferta de energia produzida pelas usinas solares individualizadas, a chamada Geração Distribuída (GD), instaladas em telhados de empresas e residências. Ela explica que este segmento, por ter pouca regulação, é o responsável por essa sobrecarga e que o país ainda precisa da energia gerada pelos grandes parques eólicos após os horários de desligamento.
“Houve um crescimento descontrolado da energia solar de telhado. E isso está trazendo impacto, inclusive, na operação do sistema em termos de segurança. Então, esse é um aspecto preocupante que o governo já tomou para si, já compreendeu que é um grande problema e que precisa buscar solução. Então, embora a gente esteja vivendo esse problema agora, esse excesso de energia, ele só acontece das 10 às 16 horas. Depois, o sistema precisa dos nossos parques, ele precisa de energia. Eu entendo que essa conjuntura é uma situação conjuntural, deve ser resolvida nos próximos tempos por questões muito mais regulatória.”
Sobre o impacto dos parques eólicos na saúde da população que reside em comunidades vizinhas, Gannoum afirmou que ainda não há estudos que comprovem esses impactos e que, hoje, as torres estão sendo instaladas a uma distância de 400 metros das casas. Ela citou casos em que as empresas ofertam isolamento acústico para as residências ou mudam o local das casas ainda dentro do território.
Por sua vez, a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovotaica (Absolar) afirmou, em nota, que “a ampla maioria destes empreendimentos é construída em locais com menor densidade demográfica, em áreas degradadas, improdutivas, subutilizadas e em terrenos já antropizados e de baixa produtividade, que normalmente não seriam aproveitados para outras atividades.”
Afirmou ainda que “o fato de algumas construções terem ocorrido em uma área que era de vegetação não representa uma irregularidade ambiental em si. A implantação destes empreendimentos fotovoltaicos atende a rigorosos requisitos legais, regulatórios e ambientais, inclusive quanto ao seu licenciamento, mitigação e compensação de eventuais impactos ao entorno.”
A associação citou os benefícios do setor para o desenvolvimento do país. “Vale destacar que o avanço das grandes usinas solares tem sido essencial para acelerar a transição energética no Brasil, ajudando o país no cumprimento das metas estabelecidas para redução de emissões de gases de efeito estufa, além de contribuir de forma significativa para a redução da dependência dos recursos hídricos, aliviando a pressão sobre os reservatórios hidrelétricos e sobre a água com seus usos múltiplos pela sociedade”
Por fim, a respeito do excesso de energia não utilizado, a Absolar informa que “mais da metade do problema histórico dos cortes de geração renovável (solares e eólicos) é causada por falta de infraestrutura elétrica (linhas de transmissão, subestações, equipamentos de proteção, compensadores síncronos, entre outros), seja por conta de atrasos em novas linhas de transmissão, problemas enfrentados em linhas existentes (como, por exemplo, danos e interrupções causadas por eventos climáticos extremos), dificuldades com licenciamento ambiental, entre outros fatores.”
Na nota, a associação informa que “mais de 39% da energia renovável solar e eólica gerada no ano de 2025 foi cortada”. Sobre a influência da chamada Geração Distribuída, que são os geradores individualizados e instalados em residências, a Absolar explica que este tipo de geração “além de ser uma fonte limpa, renovável e acessível, traz muitos benefícios à sociedade brasileira, tanto em termos econômicos quanto sociais e ambientais.”
Caminhos possíveis
O caminho de preservação pensado pelos pesquisadores e movimentos populares é apoiar o pequeno agricultor, que conserva a biodiversidade da região, e criar regras mais sólidas para a instalação desses projetos.
“Quando a gente fala em descarbonizar a economia, eu sempre digo que não se trata só de trocar energia fóssil por energia renovável. É pensar em justiça social, é pensar em justiça ambiental, é pensar em como valorizar os territórios e as populações que já cumprem esse papel de preservar e de produzir vida”, aponta Hofstaetter.
Para o biólogo João Damasceno, um processo contínuo de escuta ativa junto às comunidades seria fundamental. “Para ter uma transição energética justa, socialmente e ambientalmente equilibrada, precisamos pensar em inúmeros fatores e garantir que o desenvolvimento não seja construído às custas da biodiversidade nem das pessoas”, conclui Damasceno.
Já o professor Washington Rocha sugere dois caminhos: o planejamento espacial e a adoção de políticas compensatórias. No primeiro caso, ele afirma que hoje já existe tecnologia disponível para oferecer um serviço de precisão. “Usar análises geográficas para identificar áreas menos frágeis. Pernambuco, por exemplo, tem uma plataforma desenvolvida com a CPRH, que ajuda na gestão e no licenciamento ambiental”, explica.
No segundo caso, a sugestão dele é apoiar iniciativas de restauração. “Restaurar é estratégico não só para o bioma, mas até para a agricultura, que se beneficia da presença de polinizadores em áreas naturais próximas. Então, se há necessidade de desmatar, que haja compensação proporcional ou maior em outras áreas”, avalia.
Editado por: Maria Teresa Cruz
Fonte: BrasildeFato
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