Trio elétrico, abadá, corda, glitter e animação. Essa é a visão que quem desembarca em Salvador na década de 2020 tem para curtir o Carnaval. Mas antes mesmo de o Axé Music dar o tom da festa na capital baiana, o som era outro e os elementos também.
Para mergulhar neste universo das escolas de samba, será preciso dar adeus ao abadá e à invenção de Dodô e Osmar. Não que eles não existissem nessa época, afinal, o carnaval de rua em Salvador já acontecia com a presença dos cordões, dos blocos, das batucadas e dos afoxés.
Desta forma, o glitter e a animação ficam, afinal, estamos falando de Carnaval, porém feito de um modo diferente para a capital baiana e mais próximo da folia feita no eixo Rio-São Paulo.
Foto: Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo (Escola Juventude do Garcia)
“Essa fase das escolas de samba em Salvador, poucas pessoas conhecem. Saibam que foi um grande momento do Carnaval de Salvador. Eu diria que esteticamente foi um dos momentos altos, de maior beleza estética do Carnaval de Salvador nesses mais de 100 anos de história. E isso é comprovado além das pessoas que ainda estão vivas e podem falar a respeito. A gente tem hoje uma série de imagens que foram levantadas pelo projeto e que estão nos arquivos públicos da cidade que mostram que não foi um simples acontecimento pontual no Carnaval de Salvador. Foi mais de uma década de um esforço muito grande de uma camada da população soteropolitana de colocar as escolas de samba na rua”, afirmou a pesquisadora Caroline Fantinel em entrevista ao Bahia Notícias.
A história das escolas de samba em Salvador tem início no final da década de 50. De acordo com a doutora e mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade – IHAC/UFBA, Caroline Fantinel, responsável pelo projeto Memórias do Reinado de Momo, que conta a história da maior festa de rua do mundo, as agremiações beberam da fonte dos estados sudestinos, misturando a arte que se fazia em Salvador, para criar uma coisa única, ainda que tivessem a inspiração do Rio e São Paulo.
“Foi uma aposta estética realmente, estética musical e carnavalesca desses grupos de pessoas. Isso acontece no final da década de 1950. As escolas de samba cariocas já estavam consolidadas e muito midiatizadas, então isso serve de inspiração direta para as camadas populares que já brincavam o Carnaval de Salvador, especialmente aqueles que já estavam vinculados a cordões e batucadas, que eram manifestações carnavalescas que aconteciam naquele período ali, na década de 40, de 50.”
Escola de Samba Diplomatas de Amaralina | Foto: Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo
As escolas de samba em Salvador surgem em uma espécie de transição das batucadas, que, de acordo com o mestre em Identidade e Diversidade Cultural Rafael Lima Silva Soares, na dissertação ‘As escolas de samba da cidade de Salvador’, apresentada à banca examinadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRB, já usavam o samba, a percussão e letras autorais como formas de diversão, com o desejo de experimentar o formato das escolas de samba.
“Compostas majoritariamente de pessoas negras do sexo masculino, as batucadas soteropolitanas do século passado levavam os sons de instrumentos musicais como o agogô, tamborim, pandeiro, cuíca e ganzá. Os batuqueiros vestiam roupas brilhantes e chamativas. Apesar de manterem forte relação com a tradição africana do batuque, aproximavam-se também de outras tradições festivas, devido ao uso de fantasias, de porta-estandarte (que sempre estava à frente) e mesmo de jogos de confetes e serpentinas nas festas onde tocavam.”
O marco inicial pode ser considerado com a saída de Jaíme Baraúna do grupo carnavalesco Mercadores de Bagdá, que já apresentava um formato próximo ao Carnaval das escolas de samba, com fantasias e bateria percussiva, mas não tinha apenas o samba como tom. Formado por uma nova classe média negra ligada à indústria do petróleo, o grupo Mercadores de Bagdá foi o responsável pela democratização do uso de carros alegóricos e fantasias elaboradas, antes exclusividade da elite.
“Os carros alegóricos do Mercadores de Bagdá serviram de motivação para a criação dos carros das escolas de samba quando as escolas tiveram possibilidades de usar. Os carros alegóricos já eram inspirados nos carros das grandes sociedades do Rio de Janeiro, então tinha os grandes clubes, para ninguém se arvorar a aferir as despesas, os custos de colocar carros alegóricos”, afirmou Baraúna em entrevista a Soares.
Foto: Facebook
Uma das figuras marcantes deste período foi Nelson Maleiro, conhecido pela criatividade e homenageado atualmente no Carnaval de Salvador com a passarela que marca o início do circuito Osmar (Campo Grande).
Considerada como a primeira escola de samba da Bahia, a Ritmistas do Samba, localizada na Ladeira da Preguiça, nasceu em 1957, das mãos de sete pessoas, entre elas um rapaz chamado Washington, de apelido “Washingtinho”. Segundo Jaime Baraúna, a decisão de criar a primeira escola de samba da cidade veio de uma insatisfação do artista, que queria ver o samba como protagonista da festa.
“Ela foi uma escola de samba que foi formada por dissidentes de uma batucada, que na época chamava Nega Maluca, e a partir desse acontecimento, dezenas de escolas de samba começam a surgir em diferentes bairros da capital”, afirma Carol.
Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo (Diário de Notícias 1961)
Para Baraúna, a principal diferença entre as escolas de samba e a batucada era a forma de organização. Enquanto uma batucada era um atrás do outro, em uma espécie de fila indiana, a escola de samba era um ao lado do outro, era fileira. Outro ponto era a música tocada por eles, enquanto a primeira tinha um ritmo mais cadenciado e os instrumentos eram feitos de barrica com couro de jiboia, já as escolas de samba vieram com os instrumentos comuns de fanfarra, percussivo comum, e não tinham sopro.
“O nosso contexto de escolas de samba, é muito influenciado pelo Rio de Janeiro, mas vem dessa questão das batucadas e dos cordões, especialmente das batucadas, porque as batucadas, elas já tinham uma bateria formada, só que uma bateria menor. Então, elas precisaram, para fazer a transição para escolas de samba, potencializar, incluir uma série de novos instrumentos para conseguir alcançar essa categoria de escolas de samba. E também, figurinos, passistas, eles realmente faziam desfile, como a gente conhece mesmo, de escola de samba, com alas, com samba-enredo.”
No mapeamento feito pelo projeto Memórias do Reinado de Momo, do período de 1950 a 1975, a capital baiana contava com 25 escolas de samba, entre elas Bafo da Onça (Liberdade), Diplomatas de Amaralina (Nordeste de Amaralina), Filhos do Tororó (Tororó), Juventude do Garcia (Garcia) e Sambistas do Morro (Rio Vermelho).
Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo (Diário de Notícias 1969)
Nos jornais da época, o número dobra. Cinquenta escolas de samba foram citadas em matérias ao longo das décadas de 60 e 70. No entanto, poucas conseguiam alcançar a estrutura exigida para que fossem consideradas uma agremiação oficial.
Para se ter uma ideia do tamanho do protagonismo das escolas no Carnaval de Salvador na década de 60, os principais jornais da cidade no período da folia traziam as escolas como destaques nas capas, conseguindo ofuscar o brilho da invenção de Dodô e Osmar, que anos depois, se tornaram os “reis” da festa.
“Se você pegar qualquer jornal, qualquer jornal de Salvador no período do Carnaval, na década de 60, o que era capa do jornal como destaque do Carnaval era a escola de samba e não o trio elétrico. Durante toda a década de 60 foram as escolas de samba que protagonizaram o Carnaval de Salvador.”
O investimento neste formato de festa era tamanho, que as escolas de samba desfilavam no que se conhece atualmente como o circuito tradicional da festa.
Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo (Diário de Notícias 1975)
“Elas desfilavam ali no circuito tradicional, que até hoje é tradicional, do Campo Grande até a Rua Chile, e elas se apresentavam ali num palanque que a prefeitura colocava, que era onde acontecia um grande concurso anual de várias entidades carnavalescas e o principal, mais esperado, eram as escolas de samba. Nesse momento cultural é que se consolidam muitos sambistas baianos”, relembra Caroline.
As escolas, além dos desfiles durante o período de Carnaval, funcionavam com o intuito de formar compositores e músicos. “Dessa época a gente pode destacar Ederaldo Gentil, Nelson Rufino, Valmir Lima, Edil Pacheco, o próprio Batatinha. São compositores que se fazem nesse contexto, que bebem muito desse contexto e se consolidam como sambistas profissionais”.
DE PROTAGONISTA A FIGURANTE DA FESTA
O movimento de ascensão e queda das escolas de samba no Carnaval de Salvador surpreende quem descobre a história após 50 anos de sua existência e sua presença mais forte, mas, para os estudiosos da área, o caminho era algo previsível, devido à transformação constante da festa.
Ao Bahia Notícias, Caroline pontua o formato das escolas de samba. Quem acompanha o desfile de uma agremiação não necessariamente faz parte daquela escola, desta forma, não está incluído na festa, a não ser como público que acompanha e admira a arte.
“São vários fatores, mas tem um que eu diria que é o principal, que é o Carnaval de Salvador que vai cada vez mais se consolidando como um modelo de Carnaval participativo na década de 70. Então, se a gente imaginar que para você assistir uma escola de samba é um estilo de Carnaval contemplativo, por mais que você cante e que até dance, mas você está ali num espaço de contemplação, assistindo a escola de samba passar, com exceção, obviamente, dos participantes da escola. O público, em geral, ia para a rua para contemplar a escola.”
Foto: Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo (Escola de Samba Filhos da Liberdade)
Na década de 1970, o cenário no Carnaval de Salvador começa a mudar e o público, que antes gostava de assistir ao desfile, passa a querer fazer parte da festa, algo que é proporcionado pelos trios elétricos, por exemplo, que conseguem levar uma multidão “atrás do caminhão”.
“O modelo do Carnaval de Salvador vai migrando assim, para virar exclusivamente participativo. Hoje, a gente faz parte da festa. Isso é algo que vai mudando, então, a população cada vez mais demanda por essa participação e muito, sim, impulsionada pelo sucesso do trio elétrico na década de 70.”
As escolas de samba passam a ser prejudicadas pela nova tecnologia: “As escolas de samba não tinham uma sonorização, elas não tinham os seus sambas amplificados, como os trios elétricos com o avanço tecnológico sonoro”.
Com o crescimento da cultura dos trios, as agremiações passam a perder espaço nas ruas, se “espremendo” para que o público passasse atrás do trio elétrico. “Na década de 70 a imprensa também se volta para o trio elétrico, assim como a população que acompanha esse movimento, e passa a questionar a própria presença das escolas de samba no Carnaval de Salvador”.
Outro fator que colaborou para a quase extinção das escolas de samba na folia baiana foi a falta de auxílio financeiro por parte dos órgãos públicos. Sem o aporte, colocar a agremiação para desfilar com toda a pompa do início se tornou uma tarefa quase impossível, o que acabou minando a participação delas na festa.
“Eles não parecem preocupados nesse momento em propor soluções para preservar as escolas de samba, seja um circuito diferente, uma faixa de horário diferente para os desfiles. Pelo contrário, a prefeitura, inclusive, diminui os aportes financeiros, passa a praticamente não financiar mais, que era uma coisa que fazia na década de 60. Muitos [dos artistas] começaram a falar que escola de samba dava muito trabalho, principalmente para colocar na rua com pouco dinheiro. Os próprios brincantes, os próprios participantes das escolas de samba começam a questionar.”
Segundo Soares, o surgimento dos blocos de embalo, a exemplo do ‘Vai Levando’, que surge com a proposta da escola de samba, porém, de uma forma simplificada, focando apenas na diversão, colaborou com a transição. O último desfile oficial de uma escola de samba no Carnaval de Salvador, conforme cita Soares, aconteceu em 1985 com a Bafo da Onça, escola da Liberdade.
SAMBÓDROMO É A SOLUÇÃO?
No dia 24 de setembro de 2025, a Câmara Municipal de Salvador aprovou o Pedido de Indicação do vereador Téo Senna (PSD) para a criação de um espaço no Comércio para apresentação dos grupos e Escolas de Sambas na capital baiana.
O PI 381/2025 levou em consideração a escolha do samba como tema do Carnaval de Salvador. De acordo com o edil, o gênero, que é patrimônio imaterial do Brasil, tem grande importância para a cultura baiana e precisa receber um espaço para a valorização do estilo.
A proposta, no entanto, levantou um debate nas redes sociais, e motivou a criação do especial ‘Samba que existe e resiste’, do Bahia Notícias. A criação de um sambódromo em Salvador atenderia a quais necessidades da cidade atualmente, levando em consideração o formato que o Carnaval tem nos dias de hoje?
Foto: Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo (Escola de Samba Filhos da Liberdade)
No documento apresentado pelo vereador, não há informações sobre a cultura de escola de samba na cidade, tampouco um mapeamento das agremiações ainda existentes. Para Caroline Fantinel, é necessário que haja uma escuta antes de se desenvolver um projeto desta magnitude que irá impactar diretamente na cultura já existente.
“Eu só consigo entender que ele pode ser importante a partir de uma escuta à classe de sambistas da cidade de Salvador. São essas pessoas que devem dizer do que elas precisam. Então, sem uma escuta qualificada a essas pessoas, não dá para dizer, pessoas externas a esse movimento, dizerem o que falta, ou o que não falta para o samba de Salvador. O samba é uma cultura muito forte da nossa cidade, nunca deixou de ser, mas a gente sabe que é um movimento cultural de pouco apoio, institucional, político, tanto do Estado quanto da cidade. Então, talvez ao invés de pensar num espaço exclusivo para isso, é ouvir essas pessoas e entenderem se de fato é isso que elas precisam. Se é de mais destaque no Carnaval, nos próprios espaços já consolidados do Carnaval, ou apartar elas do que já está consolidado no Carnaval de Salvador.”
O Bahia Notícias levantou dados sobre escolas que funcionam em Salvador, entre elas a Escola de Samba Unidos de Itapuã, Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Filhos da Feira de São Joaquim, e o Grêmio Recreativo Escola de Samba Diamante Negro.
Para os representantes dessas agremiações existentes, é importante que se olhe para a cultura das escolas de samba, mas que o espaço exista para além do Carnaval.
Unidos de Itapuã | Foto: Divulgação
O site conversou com Nailtom Maia, gestor da Unidos de Itapuã, Avani de Almeida, presidente da Filhos da Feira, e Matheus Couto, responsável pela Diamante Negro, que pontuaram a necessidade ainda de profissionalização dos participantes dessas escolas, além do auxílio social para as agremiações, visando o trabalho feito por uma escola, que tem contato direto com as comunidades.
“Escola de samba não para. O trabalho social não, mas o do carnaval a gente também, a gente começa cedo. Seria interessante que apresentassem propostas para a profissionalização das costureiras, por exemplo, para confecção das fantasias, cursos para percussionistas. Se houver alguém que queira impulsionar isso, pode dar algo interessante. Porque a gente não faz uma festa de graça”, afirmou Avani.
Unidos da Feira | Foto: Facebook
Nailtom chegou a citar um projeto similar apresentado por Carlinhos Brown, o Afródromo. Para o músico, seria interessante pensar em algo que contemplasse o samba e todos os outros ritmos que fazem a festa em Salvador de uma forma geral e não apenas durante o Carnaval.
“Penso que seria interessante abrir espaço para todas essas manifestações e não apenas o samba. Eu acho que a Bahia é diferenciada, Salvador principalmente. E a gente tem uma coisa rica, a gente não pode se esquecer dos nossos irmãos, isso também. A gente precisa ainda de uma revitalização das escolas, ver quais aceitariam participar dessa proposta.”
Os questionamentos de quem faz as escolas acontecerem atualmente, é o mesmo de quem estuda a cultura baiana.
“Pensando nesse projeto de sambódromo, a cidade de Salvador não tem uma cultura de escolas de samba proeminente. Apesar de termos escolas de samba, a gente não tem uma cultura consolidada de escola de samba. […] O que esse sambódromo contemplaria? E para além desse sambódromo, como é que se daria a manutenção, que tipo de aporte, de apoio de manutenção esses grupos teriam eu acho que isso é o mais importante, mais importante do que ter um espaço para visibilização, para promoção é a própria sustentabilidade desses grupos”, levanta Fantinel.
O SAMBÓDROMO TRARIA A CULTURA DAS ESCOLAS DE SAMBA DE VOLTA?
O desejo de muitos, especialmente de quem fez parte da festa na década de 60 e 70 é de que a era de ouro volte a brilhar. Para Fantinel, é necessário entender o contexto cultural e perceber qual movimento o Carnaval tem feito atualmente.
“Essa pergunta é uma pergunta que algumas pessoas fazem, né? Inclusive essas pessoas que viveram as escolas de samba, quando a gente entrevistou elas, elas falaram, né? ‘Ah, eu queria muito que isso voltasse’. E olha, eu sou pesquisadora da memória do Carnaval de Salvador. E eu já pesquisei tantos momentos diferentes ao longo desses 140 anos de história que tudo é possível. Tudo é possível para essa festa que é tão camaleônica, ela vai se transformando à medida que ela vai se relacionando com a própria história. Mas eu diria que hoje, seria muito difícil a gente ter o destaque que as escolas de samba tiveram na década de 60. Ou, por exemplo, que as escolas de samba têm no Carnaval do Rio.”
Foto: Registro cedido pelo projeto Memórias do Reinado do Momo
A pesquisadora acredita que um retorno em sua totalidade é quase impossível para o cenário da festa, mas o debate pode inspirar o surgimento de novas agremiações.
“Mas assim, eu também acredito que o Carnaval de Salvador tem espaço para absolutamente tudo. Então, as escolas de samba que já existem na cidade, elas devem ter um espaço no Carnaval também. E o fato de elas terem um espaço garantido pode inclusive incentivar que outros grupos de pessoas queiram também ter suas escolas de samba.”
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