Fachada do STJ 16 de outubro de 2025 | 09:38
Como funcionava o esquema de venda de sentenças do STJ, segundo o próprio STJ
A investigação interna aberta pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para apurar as suspeitas de venda de decisões por assessores de ministros revelou detalhes sobre a metodologia adotada na elaboração de minutas sob suspeita, que inclui a apresentação de argumentos contraditórios e o respaldo em uma jurisprudência falsa.
Foi com base nessa sindicância que o STJ decidiu, no mês passado, pela demissão do servidor Márcio José Toledo Pinto. Ele também é investigado pela Polícia Federal sob suspeita de ter recebido R$ 4 milhões de um lobista em troca da venda de decisões. Ouvido pelo STJ, Márcio Toledo negou ter cometido irregularidades e disse que a decisão sob suspeita foi elaborada de acordo com precedentes adotados pelo próprio tribunal. Sua defesa afirmou que ele atuou “nos exatos limites de sua competência técnica” (leia ao final).
O Estadão teve acesso com exclusividade aos detalhes do Processo Administrativo Disciplinar (PAD) que resultou na demissão do servidor e traçou um panorama das minutas de decisões que teriam sido vendidas a advogados e lobistas.
A sindicância analisou em detalhes um processo que tramitou sob relatoria da ministra Nancy Andrighi no período em que Márcio Toledo era assessor do gabinete. Tratava-se de um recurso movido no STJ pelo deputado Wellington Luiz (MDB), atual presidente da Câmara Distrital do Distrito Federal, em uma disputa contra uma empresa estatal do Distrito Federal. Ele pedia que o STJ lhe concedesse, por usucapião, a posse de um terreno que pertencia à estatal.
O caso só entrou na mira das investigações depois que o advogado Rodrigo Alencastro registrou um boletim de ocorrência na Polícia Civil do Distrito Federal relatando ter ouvido de sua ex-mulher, a advogada Caroline Azeredo, uma tentativa de venda de decisão desse processo. Em depoimento à sindicância, Wellington Luiz confirmou ter recebido telefonema de uma intermediária de Caroline oferecendo serviços para que ele fosse vitorioso no processo, mas disse que se recusou a contratá-la.
O recurso já tinha sido negado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e pela presidência do STJ. Depois, ele foi distribuído para a ministra Nancy Andrighi. Um dos seus assessores, Márcio Toledo, mudou o entendimento e elaborou a minuta de uma decisão favorável ao deputado, concedendo a ele a posse do terreno. A minuta foi enviada para a ministra Nancy, que confirmou a decisão elaborada por seu assessor — antes de tomar conhecimento das suspeitas envolvendo o caso.
A sindicância do STJ analisou o teor da decisão monocrática elaborada por Márcio Toledo e concluiu que os argumentos apresentados não se sustentavam.
“Uma leitura atenta da decisão monocrática evidencia uma contradição interna notável: o texto apresenta premissas que se anulam mutuamente para justificar o deferimento do pedido do Sr. Wellington Luiz”, diz o relatório. Após reproduzir os trechos, o relatório afirma: “O equívoco lógico é evidente: o primeiro trecho afirma que o imóvel tem uso público, o que inviabilizaria a usucapião; já o segundo ignora essa premissa para concluir que o bem seria passível de usucapião por ausência de afetação pública”.
Para a comissão de sindicância, houve “direcionamento intencional” dos argumentos para favorecer o pedido do deputado.
Na minuta elaborada, Márcio Toledo também listou diversos julgamentos realizados pelas turmas do STJ, com o objetivo de reforçar que havia precedentes para o entendimento adotado. Trata-se da chamada jurisprudência. Mas a sindicância concluiu que os casos citados na decisão não tratavam da mesma situação e seriam, portanto, uma falsa jurisprudência citada para corroborar um entendimento inexistente.
“Uma leitura atenta das teses constantes desses acórdãos evidencia que tais precedentes não respaldam a solução adotada. Neles, o entendimento consolidado é que bens de sociedade de economia mista ou empresas públicas podem, em tese, ser objeto de usucapião desde que não estejam afetados à prestação de serviço público. Ou seja, a condição essencial é justamente a inexistência de destinação pública — circunstância que, no presente caso, estava fartamente comprovada pelas instâncias inferiores”, diz a comissão.
Outros assessores de Nancy prestaram depoimento à sindicância e afirmaram que a decisão elaborada por Márcio Toledo fugiu do padrão adotado pelo gabinete. Segundo eles, a ministra só costuma proferir decisões monocráticas em casos com vasta jurisprudência consolidada. Os processos sem entendimento prévio dos tribunais costumam ser levados por ela para julgamento colegiado com outros ministros. Esse caso específico deveria, na avaliação deles, ter sido levado à turma.
“Dessa análise, resulta evidente que houve distorção consciente do quadro fático e jurídico, de modo a criar um fundamento artificial para beneficiar o Sr. Wellington Luiz. Não por acaso, essa foi a única decisão favorável a ele em todo o histórico processual — decisão esta que se revela marcada por inconsistências internas”, afirmou o relatório da comissão. “Tudo indica tratar-se de ato consciente e doloso, estruturado para viabilizar o favorecimento indevido ao Sr. Wellington Luiz, em sintonia com a intermediação ilícita relatada”, concluiu.
Depois de tomar conhecimento das suspeitas, a ministra Nancy decidiu anular todas as decisões tomadas no caso. Com isso, voltou atrás no entendimento que favoreceu o deputado e proferiu decisão favorável à empresa estatal do governo do Distrito Federal.
Em nota, a ministra afirmou que o servidor foi afastado do seu gabinete assim que tomou conhecimento das suspeitas. “O gabinete da Ministra Nancy Andrighi registra que Márcio Toledo Pinto foi servidor concursado do STJ por 21 anos, lotado neste gabinete por pouco mais de 1 ano e, assim que os supostos fatos delitivos foram noticiados, o funcionário foi sumariamente dispensado do Gabinete. Consigna, ainda, que as minutas feitas pelo ex-servidor, no processo indicado na reportagem, foram tornadas sem efeito por esta Relatora, tendo o recurso sido julgado, de forma unânime, pelo colegiado da Terceira Turma do STJ, em pauta presencial. Frisa que os processos de responsabilização se encontram em andamento, a fim de que os fatos sejam devidamente esclarecidos e os responsáveis punidos de forma exemplar.”, disse a ministra Nancy Andrighi.
A defesa de Márcio Toledo Pinto afirmou, no processo, que não havia provas de ter sido o responsável pelo vazamento de minutas ou elaboração de decisões para favorecer indevidamente alguma das partes.
De acordo com a defesa, a decisão favorável ao deputado Wellington Luiz “foi tomada com base em precedentes das 3ª e 4ª turmas do STJ, que acolhem a tese de usucapião extraordinário em hipóteses similares”. Os advogados afirmam que o próprio assessor voltou atrás na decisão após receber manifestação jurídica do governo do Distrito Federal sobre os fatos em análise. “Posteriormente, com a chegada dos memoriais do GDF, o servidor procedeu, espontaneamente, à reavaliação da decisão. Ocorreu então a retratação da decisão anterior, mediante fundamentação distinta”, diz a defesa.
“A atuação do servidor, portanto, deu-se nos exatos limites de sua competência técnica, em respeito e com total ciência de Sua Excelência a ministra relatora, que assinou as decisões após recebê-las e aprová-las formalmente”, diz a defesa do assessor.
Aguirre Talento/Estadão Conteúdo
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