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Entre slams e batalhas: Cultura do hip-hop se fortalece em movimentos periféricos de Salvador

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Hip-Hop é o ar que eu respiro, a sabedoria de quem não precisa resolver mais no tiro. É o que diz a letra da música “É Isso Que Eu Tenho No Sangue”, da banda Planet Hemp, uma das mais importantes do movimento hip-hop no Brasil. A frase pode ser considerada a representação do poder de transformação e engajamento dessa cultura em diferentes partes do mundo. Nesta quarta-feira, 12 de novembro, em que é celebrado o Dia Mundial do Hip-Hop, o Bahia Notícias realizou uma pesquisa para compreender como esse movimento cultural se manifesta na capital baiana. 

 

Em entrevista ao Bahia Notícias, a educadora musical e mestra formada pela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Djenane Silva, destaca que o hip-hop remonta as vivências de pessoas “de cor”, como eram consideradas as pessoas negras e latinas, nos subúrbios norte-americanos. Em seu estudo intitulado “Uma fita de mil grau: o movimento hip-hop na construção de identidades culturais afrodiaspóricas”, a pesquisadora explora as dimensões dessa construção étnico-social. 

 

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“A cultura hip-hop, ela nasce nos guetos norte-americanos e a gente precisa pensar aqui na periferia de Nova York, que não é muito diferente da periferia de grandes centros, sobretudo nas Américas”, contextualiza. “No caso ali do Bronx, do Harlem, [em Nova York, nos Estados Unidos] eram [população] majoritariamente [de] pessoas negras e pessoas latinas, que eram justamente ali postas à periferia da cidade porque eram pessoas imigrantes”, destaca. 

 

 

Essa origem norte-americana do movimento também explica a escolha do dia 12 de novembro para homenagear essa cultura. No dia 12 de novembro de 1973, foi criada em Nova York a Universal Zulu Nation, grupo de conscientização da cultura hip-hop. O grupo foi fundado pelo DJ Afrika Bambaataa, artista nova-iorquino que ainda atua como uma liderança social no movimento do hip-hop americano. 

 

Como uma “cultura afrodiaspórica”, Djenane explica que essa cultura chega com alto nível de identificação aos jovens negros dos grandes centros urbanos do Brasil. “O hip-hop ele está em todo lugar, mas nesses [centros urbanos] efetivamente, ela é uma cultura da diáspora africana”, sucita. 

 

O TOQUE BRASILEIRO
Para a sua pesquisa em território brasileiro, a Djenane considerou o “epicentro” do hip-hop como a cidade de Diadema, na região metropolitana de São Paulo. Seu primeiro contato musical com a cultura hip-hop ocorreu na capital paulista, com a repercussão do álbum “Nó na Orelha” do rapper Criolo, lançado em 2011. 

 

“Eu percebi que, com as músicas, com a dinâmica da dança – que é o break -, com os elementos da cultura hip-hop: o grafite, o break, o MC, o DJ, você tem ali um reforço de identidades afro-diaspóricas, porque as pessoas que frequentam, que consomem e fazem a cultura girar, são pessoas negras, na sua grande maioria”, explica. “Ali eles se reconhecem, ali eles constroem códigos de identificação, porque já se considera que existem outros elementos da cultura hip-hop, como, por exemplo, a moda”, ressalta. 

 

A pesquisadora destaca ainda que o “guarda-chuva cultural” do hip-hop também acaba abrangendo modos de vida e transporte como a prática do basquete, a realização de bailes e o uso do skate como prática de lazer e transporte. 

 

E isso tudo só existe porque a organização dos grandes centros combina todos esses elementos, ainda que eles possuam históricos distintos. “Esses elementos da cultura Hip-Hop, o grafite, o DJ, o MC, o break, já existiam enquanto linguagens artísticas, enquanto elementos não necessariamente de uma mesma cultura, mas se a gente pensar nessa juventude periférica – que não tinha muita oportunidade, tanto de lazer, quanto de trabalho -, eles exerciam sua criatividade na rua, por isso essa cultura hip-hop é uma cultura de rua. É uma cultura urbana essencialmente de rua”, completa. 

 

“Toda essa ligação dos elementos auxilia nessa construção [do movimento do hip-hop]. É a questão também da estética, né? O cabelo, os penteados, a roupa, as marcas de roupa, por exemplo, ‘Os Racionais’, salvo engano, montou uma grife chamada 4P. Estou dando um exemplo, mas existem outras, outros empreendedores que surgiram na questão da cultura hip-hop”, 

 

HIP-HOP COM DENDÊ 
Mas apesar do hip-hop ter sido importado dos Estados Unidos diretamente para São Paulo, essa manifestação cultural se expandiu rápido pelo Brasil e a Bahia não escapou dessa crescente. Considerando que a cultura do hip-hop possui diversos elementos para além do rap, as batalhas de rima e as batalhas de slam se destacam como expressões culturais que passam por um momento de ascensão. 

 

O Bahia Notícias conversou com Vitor Carvalho, produtor cultural e um dos organizadores da Batalha da Torre, considerada a batalha de rima mais relevante do Nordeste, que ocorre em Salvador. Em entrevista, ele conta que a batalha foi fundada por alunos do Colégio Estadual Thales de Azevedo, no bairro do Costa Azul, em 2017. As edições, que ocorriam semanalmente as sextas-feiras ao final da tarde, migraram para os sábados. 

 

“A batalha da torre surge em 2017, eu não fui fundador, criador da batalha, eu cheguei em 2018, mas surgiu em 2017 por outros organizadores. Ela surgiu ali no Parque Costa Azul, que é perto do [Colégio Estadual] Thales de Azevedo. Basicamente era o pessoal que gostava de batalha, que estudava no colégio, terminava o colégio e começou a fazer a batalha. Começou com uma brincadeira, só que começaram a gravar e chegou em outras pessoas e aí foi crescendo, assim surgiu a Batalha da Torre”, conta.

 

 

Para Vitor, que começou a atuar no grupo em 2018, o crescimento da batalha se deu conforme os vídeos das edições passaram a alcançar um público não correlacionado ao colégio. “Os vídeos chegaram em outras pessoas que não chegavam antes e chegou em batalhas de MC de São Paulo, Rio [de Janeiro], Distrito Federal e, com isso, foi de fato com onde começou o crescimento da torre e de 2018 para cá foi realmente esse pontapé que colocou a gente no cenário [nacional] de fato”. 

 


Foto: Arquivo / Batalha da Torre

 

Ele conta que os eventos semanais são gratuitos, e contam com cerca de 25 a 30 MCs, sendo que apenas 16 MCs que competem. Entre expectadores, seriam cerca de 20 espectadores presenciais, sem contar as reproduções virtuais. Já nas edições especiais, com MCs mais conhecidos, as batalhas chegam a 100 espectadores presenciais. 

 

Para Vitor, o poder do hip-hop é a capacidade de ampliar horizontes. “É o poder de mudança, o poder de transformar uma vida ou mais vidas dentro dessa cultura”, resume. Sob a própria experiência, ele relata o sentimento de milhares de jovens negros e periféricos. 

 

“Em 2017, quando eu conheci a batalha, eu estava num momento complicado na minha vida, de forma psicológica mesmo, não tava muito bem. Já foi uma pequena mudança dentro de todo o caos que estava [o psicológico] naquele momento. A mudança que teve na minha vida foi gigantesca, porque eu passava a semana toda pensando: ‘Mano, quero que chegue a sexta’, na época a batalha era na sexta, e terminava uma e eu já ficava pensando na próxima”, relata. 

 

“E com isso eu fui melhorando, [o hip-hop] foi o causador dessa mudança dentro da minha vida. Mas dentro disso tem diversas outras pessoas. Quantos jovens não saíram do crime, e eu conheço, pessoalmente, dentro da batalha, pessoas que eram do crime e ali a pessoa vê uma fagulha, um mínimo de mudança”, acrescenta. 

 


Foto: Arquivo / Batalha da Torre

 

Mas para além das batalhas de rima e do próprio rap, como a vertente musical, existe no “guarda-chuva” do hip-hop o slam, manifestação cultural com foco na poesia. É uma competição onde a performance e o conteúdo poético autoral são avaliados por juízes ou pela plateia. Nas batalhas de rima, ou freestyle, como são conhecidas, as batalhas são mais atreladas a agilidade, improviso, rimas e no “flow”, com uma disputa mais direta entre os MCs. Ambas as competições ocorrem sem acompanhamento musical. 

 

Na batalha de poesia, que ocorre em mais de 80 países, os poetas não tem permissão de possuir um acompanhamento musical ou qualquer adereço. A poesia precisa ser autoral, do próprio poeta competidor, que tem até três minutos para recitar. Caso ultrapasse o tempo, o poeta sofre uma punição de décimos em sua avaliação. 

 

A capital baiana possui alguns slams em destaque, entre eles o Slam das Minas Bahia, fundado pelas artistas Nega Fyah, Ludmila Singa, Drica e Jaqueline. O projeto chegou à Bahia em 2017, após o contato de Fyah com o Slam das Minas São Paulo, em 2016, quando ela se tornou a primeira mulher nordestina a chegar na final do Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, no Slam BR. 

 

 

“Surgiu a ideia porque aqui no cenário de poesia, da Bahia, principalmente Salvador, a maioria dos Slams eram todos homens. E aí, na maioria das vezes, só tinha um competindo dentro dessas e quando a gente se junta é para trazer a questão do protagonismo, o acolhimento das mulheres na literatura”, explica a poeta. 

 

“A gente também faz as seletivas municipais, estaduais e nível nacional para ter um representante do Brasil na competição mundial que cada ano acontece em um determinado país”, acrescentou. 

 

Apesar das diferenças, Nega Fyah afirma que o slam e o hip-hop são “parentes”. Em especial pela conexão da Slam das Minas com a música. “Slam das Minas é diferente de todos os outros slams que você possa pesquisar pelo Brasil afora. O Slam das Minas tem esse diferencial, porque a gente traz atrações musicais para tocar em nossas batalhas de poesia”, garantiu. 

 


Foto: Reprodução / @slamdasminasba

 

Ambos os movimentos, a Batalha da Torre e o Slam das Minas tem início na mesma época, em meados da década de 2010. A pesquisadora Djenane contextualiza isso devido à temporalidade da sua própria pesquisa, publicada em 2018, com análise em 2017. 

 

“Eu acho que esse boom não é de agora não. Já tem um tempo, inclusive. Na época da minha pesquisa, saiu inclusive uma porcentagem do ranking de escuta de alguns gêneros musicais e o rap era mais escutado, era mais ouvido do que o rock, por exemplo. Isso eu tô falando 2017.”

 

Esse momento, que por muitos é considerado um ponto de virada das o hip-hop no Brasil, acabou sendo só o início de um boom promovido pelas plataformas digitais durante a pandemia. Para Vitor, “depois da pandemia foi um pouco dessa virada, porque na pandemia o TikTok teve um acréscimo [de público] muito grande, tanto que hoje dentro do cenário, não só de rap e de batalha, existe o termo é o ‘público de TikTok’”. 

 

Ele explica que a divulgação dos cortes das batalhas de todo o Brasil viralizavam com mais facilidade e “isso atingiu muitas pessoas e fugiu da bolha”. “Muitas pessoas não entendem que existe uma cultura por dentro disso, um jeito de acontecer”, conta. 

 

Com o repertório de sua pesquisa de mestrado, que teve uma metodologia “participativa”, Djenane conta “observava que tinha muita gente que era fora de um contexto assim”. “Eram pessoas de classe média alta, pessoas brancas, em um contexto que estava se falando de um texto político nas músicas e as pessoas não estavam entendendo o que estava acontecendo”. 

 

“Elas estavam ali cantando junto sem necessariamente ter a compreensão. E assim isso é muito comum mesmo, até porque o rock, fazendo um paralelo, tem muitos grupos que foram políticos, que lançaram obras políticas, e as pessoas não entenderam muito bem”, exemplifica. 

 

Como organizador de eventos dos hip-hop, Vitor diz que “isso, de certa forma, foi e é um pouco prejudicial”. “E por isso muitas batalhas estão lutando e perseverando para moldar um pouco, tentar fazer esse público entender que não é assim, que você não só está lá para ver o seu MC favorito, você está ali pelas rimas, a cultura, pelo poder de transformação que a batalha tem e, enfim, hoje em dia é complicado”, completa. 

 

Para além das rimas, a cultura política do hip-hop, infelizmente, ainda precisa avançar. Propostas como a do Slam das Minas, para o protagonismo feminino no hip-hop, ainda são consideradas inovadoras. O hip-hop, ainda muito atrelado à figura masculina cis heteronormativa, ainda dá passos lentos em direção à inclusão. 

 

DESCENTRALIZAÇÃO E INCLUSÃO
Da mesma forma que o hip-hop enquanto dimensão estética, musical e cultural impacta profundamente à vivência de pessoas negras periféricas, o movimento ainda busca incluir um público consumidor e artistas mais diversos. Em um cenário masculinista, a inclusão de mulheres e pessoas LGBT ainda é pontual. 

 

Ao BN, Fyah destaque que o Slam se tornou, com o tempo, mais do que uma batalha de poesia. “O Slam das Minas é uma plataforma de protagonismo, acolhimento e potencialização das mulheres. Então a gente tem feira de empreendedoras, hoje a gente tem um selo literário, a gente teve algumas artistas e no primeiro ano passaram pelo palco do Slam das Minas, o primeiro show de Duquesa foi no Slam das Minas, Luedji tocou conosco duas vezes”.

 

Em um ambiente costumeiramente ocupado por homens, o Slam das Minas Bahia vem com a proposta de ser um espaço onde poetas possam ser acolhidas e ouvidas. “O Slam das Minas chega justamente para assegurar um espaço seguro dentro das nossas medidas do possível para essas mulheres, para que ela tenha um protagonismo, para que ela se sinta acolhida dentro desse espaço. Não só as mulheres que estão competindo, mas o público também”, completou. 

 

Apesar disso, o espaço não exclui a participação masculina que podem frequentar o espaço, desde que respeitam o protagonismo das mulheres no evento. Essa luta pelo  protagonismo feminino é sentido por Nega Fyah também em outros elementos da cultura hip-hop. Na música, a poeta elogia o crescimento de artistas femininas na cena. 

 

“Acho que movimento hip-hop, né, tanto as outras áreas como as MCs, as DJs e agora, os Slams, lutam para que a gente tenha cada vez mais representatividade, que seja valorizada, não somente no cenário, mas financeiramente também. Então, é importante ver que a luta coletiva, – porque o hip-hop é feito coletivamente – está aí, trazendo frutos positivos para a comunidade feminina”, celebrou. 

 

Para Djenane, “é urgente se discutir a presença feminina em todos os espaços, mas eu não vou só além do feminino. A gente tem também artistas LGBTs que já fazem hip-hop há algum tempo. Aí eu vou entrar numa questão, eu acho que eu sempre pontuo isso, quando eu vou falar, porque todo mundo sabe desse senso comum. De que o hip-hop é um ambiente, uma cultura extremamente machista, que não dá vez e voz às mulheres”, conclui. A pesquisadora cita nomes femininos e LGBTs importantes para o rap, especialmente, como Negra Li, Lauren Hill e Rico Dalasam. 

 

Na tentativa de incluir mais públicos, a Batalha da Torre pensa em soluções para garantir maior acesso de minorias às batalhas. “A gente está fazendo um movimento que é tentar confirmar metade [dos MCs] sendo de outras minorias, que dentro da batalha são minoria, mulheres e LGBTs. Então, a gente tá tentando sempre confirmar quatro de cada [sub-grupo]”, explica Vitor. “E esse é um dos movimentos que a gente tá fazendo agora, mas a gente está tentando justamente [fazer] para também sentir o momento delas e entender também o pensamento delas. A gente sempre se põe disposto a ouvir também, o que a gente pode melhorar, o que a gente pode fazer para tornar um pouco mais inclusivo”. 

 

Em Salvador, apenas um das principais batalhas de rima, a Batalha das Brabas, é focada no público feminino e LGBTQIAPN+.

 

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