O advogado Vitor Marques 20 de fevereiro de 2025 | 09:37
Entrevista – Vitor Marques: “O STF não tem a função de apresentar caminhos, mas de resolver conflitos e pacificar”
O Executivo responde ao presente, o Legislativo aponta o futuro e o Poder Judiciário olha para o passado. A afirmação é do advogado Vitor Marques e soaria perfeita, não fossem os tempos de rusgas institucionais entre os Poderes vividos no Brasil, inflamado pela polarização política.
Doutorando e Mestre em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Marques é autor do livro que faz uma imersão histórica sobre a compreensão do constitucionalismo moderno com olhar especial sobre o STF, instância máxima do judiciário brasileiro que passou a ter um protagonismo inédito nos últimos anos. “O Supremo Tribunal Federal no Brasil: Protetor da Constituição ou Fonte de Exceção?”, da editora Contracorrente, levanta uma reflexão sobre a alteração da estrutura de controle de constitucionalidade, mirando como exemplo o modelo europeu.
Nesta entrevista exclusiva ao Política Livre, um dia após a Procuradoria Geral da República oferecer denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de estado, Vitor Marques, que também é comentarista da CNN Brasil, analisa os aspectos de origem para essa efervescência conflituosa entre política e judiciário, defende que o STF foi fundamental para salvaguardar o ambiente democrático do país nas eleições de 2022, mas que não cabe à corte apontar os caminhos para o futuro, especialmente a partir de casuísmos.
Ele sustenta que a agenda da extrema direita não encontra amparo na Constituição e anistiar os condenados pelo 8 de janeiro configura um novo ataque à democracia.
Leia a entrevista completa:
Você lançou recentemente um livro que traça uma linha entre o papel do STF como protetor da Constituição e a excepcionalidade de algumas decisões que configuram medidas de exceção. É preciso rever a atuação do Supremo no Brasil?
O livro tem como finalidade elaborar uma análise que seja atemporal do Supremo Tribunal Federal, ele trata da construção do constitucionalismo no Brasil tendo como base, tendo como fonte os Estados Unidos e o continente europeu. Isso foi evoluindo ao longo do tempo e é uma provocação de uma pesquisa que iniciou em 2019 e foi atualizando até a publicação em 2024 sobre o papel do STF, se a gente olhar para as cortes constitucionais seja dos Estados Unidos ou da Europa. A finalidade é estabelecer balizas e o que poderia ser aperfeiçoado. Veja, eu reconheço a importância do Supremo Tribunal Federal, talvez como uma das últimas trincheiras necessárias para impedir um movimento autoritário que estava em curso no Brasil. O Supremo Tribunal Federal precisa ser exaltado nesse sentido, é um poder contramajoritário e é justamente em momentos em que nós temos avalanches autoritárias, em que nós temos uma maioria sufocando garantias, destruindo direitos e muitas vezes, como nós assistimos no Brasil, tentando impor uma nova ordem jurídica e política, que um poder contramajoritário precisa agir na contenção, protegendo direitos individuais, protegendo a democracia e o Estado, e foi isso que aconteceu. Agora, isso não nos impede de estabelecer uma análise naquilo que poderia aperfeiçoar o Supremo Tribunal Federal. E é nesse ponto que eu toco já ali no terceiro capítulo do livro, quando eu menciono algumas decisões que ao meu ver não criam jurisprudência, uma vez que o Supremo, por toda a sua competência, competência no sentido de todas as suas atribuições, acaba decidindo sobre muitos temas de várias naturezas, e isso faz com que inevitavelmente, em alguns casos, ao meu ver, as decisões incorram em medidas de exceção.
O protagonismo do STF, especialmente em decisões políticas, é um sintoma desse estado de exceção?
Veja, o Brasil é um país profundamente desigual e me parece que uma das fontes de discussões políticas no STF é justamente em razão dessa desigualdade. Países em que há uma igualdade social superior faz com que a provocação ao Judiciário seja menor, ou seja de uma outra natureza. Nós lemos em países desenvolvidos que a busca pelo Judiciário ocorre para tratar de outros temas, e não de temas que muitas vezes ainda estão em construção no país, então muitas vezes o Supremo acaba sendo instado a se manifestar. Então, é importante fazer esse registro de que o Supremo só age quando provocado, e num país desigual são muitas as provocações que chegam até o Supremo, inevitavelmente isso acaba gerando um protagonismo. Acho que esse dito protagonismo também tem relação com a polarização que o país vive hoje, de modo que alguns acabam compreendendo o Supremo Tribunal Federal como um ator político, que não é, ou não deveria ser, porque trata-se de um poder que é não eleito, tem a função de julgar, e aí há uma divisão clássica na tripartição de funções que estabelece que o Executivo responde ao presente, o Legislativo aponta o futuro e o Poder Judiciário olha para o passado. Então o STF não tem a função de apresentar caminhos, mas de resolver conflitos e pacificar situações. Então é natural que que num país com o perfil do Brasil o Supremo seja muito procurado e nesse momento em que há uma polarização política na sociedade grande, as partes às vezes acabam confundindo o Supremo Tribunal Federal, que às vezes agrada um lado às vezes desagrada e não me parece um critério correto você utilizar decisão judicial para estabelecer uma análise sobre funções e competências do Supremo Tribunal Federal e nem composição, tão pouco composição. Acho que para se tentar um aperfeiçoamento que seja comprometido com o Supremo Tribunal Federal e com a sua importância, qualquer análise não pode estar inserida num contexto de casuísmo para atender determinada finalidade política. Ter decisões de exceção, ao meu ver, estão mais vinculadas ao número de matérias que o Supremo acaba decidindo, Claro, o Supremo, embora ele decida com imparcialidade, ele está inserido na sociedade. Então, ao meu ver, eventuais decisões que na doutrina são classificadas como de exceção ocorrem por conta do número grande de matérias que o Supremo tem que decidir, e muitas vezes influenciado, ou não propriamente influenciado, mas tocados pelo cenário em que o país vive.
“O surgimento das emendas impositivas e o impeachment da ex-presidente Dilma são dois momentos que desalinham o funcionamento entre os poderes”
Onde é que nasce, no nosso passado recente, esse ambiente de beligerância entre os poderes? Nosso regime de freios e contrapesos não está funcionando?
No nosso passado recente tem dois momentos cruciais que impactam na relação entre os poderes, no impeachment da ex-presidente Dilma, quando, ao meu ver, ali houve um golpe, não um golpe clássico como nós assistimos na história na década de 60, de 70 no Brasil e boa parte da América Latina, mas golpe no sentido de ruptura institucional. Ali o poder executivo foi agredido por uma causa essencialmente política sem existir um fator jurídico para tal e, obviamente, causa sequelas e consequências. Ali foi um primeiro episódio. E em seguida, um pouco antes na verdade, e que se agravou depois no governo do ex-presidente Bolsonaro, que é o surgimento das medidas impositivas, então ela surge em 2015 já com a fragilidade política do governo Dilma, e em 2019 aí há uma completa perda de controle desse assunto e o Centrão acaba tomando parte do orçamento público com o advento do orçamento secreto, com o apoio do ex-presidente Bolsonaro. O surgimento das emendas impositivas e o impeachment da ex-presidente Dilma são dois momentos que desalinham o funcionamento entre os poderes, isso faz com que o Legislativo passe a ter muita força, de modo que o Executivo perca prerrogativas e poder, e isso tem as suas consequências. E ao mesmo tempo o judiciário, aí na figura do Supremo Tribunal Federal, passa a ser constantemente instado para resolver conflitos que são gerados no âmbito do debate político.
“Se a gente comprar o número de artigos da Constituição com o número de PECs já aprovadas, é um número muito alto. Então acho que a gente precisaria refletir sobre como esse instrumento foi banalizado e muitas vezes acaba servindo como arma contra decisões do Supremo”
No livro você defende uma reflexão sobre a estrutura de controle da constitucionalidade, mais próximo ao modelo europeu. Como seria isso na prática no Brasil? Isso comunga com aquela PEC para permitir que o Congresso possa revisar decisões monocráticas de tribunais superiores?
Pode soar estranho alguém que como eu defendo o Supremo Tribunal Federal, as suas prerrogativas, a sua importância para a sociedade, como eu disse anteriormente, como uma trincheira fundamental para garantir a democracia que foi o Supremo Tribunal Federal e também o TSE na eleição de 2022, provocar uma discussão sobre as suas competências pode até em alguma medida parecer muito contraditório, mas não é e justifico. Toda vez que nós pensamos em poder, acho que ele precisa ser pensado de uma forma compartilhada, e não concentrada. E para alguns temas, me parece que seria mais eficiente se nós tivéssemos uma Corte, na verdade constitucional, como há em alguns países, por exemplo, na Alemanha, em vários países da Europa, tratando só de temas constitucionais e não de decisões em casos concretos. O Canadá tem uma experiência em que o legislativo para alguns assuntos pode suspender. pode rever decisões do Poder Judiciário lá. Isso não me parece absurdo. Parece absurdo se a gente inserir no nosso contexto real do Brasil. E aí isso acaba obstruindo um pouco a discussão. Agora num plano abstrato e talvez num momento com mais tranquilidade política, isso pudesse ocorrer. Nós temos hoje quase 200 PECs, o que simboliza quase que uma nova Constituição. Se a gente comprar o número de artigos da Constituição com o número de PECs já aprovadas, é um número muito alto. Então acho que a gente precisaria refletir sobre como esse instrumento foi banalizado e muitas vezes acaba servindo como arma contra decisões do Supremo. Então a minha provocação é como estabelecer um alinhamento, uma harmonia entre os poderes, sobretudo no que se refere às decisões judiciais para que a gente supere essa briga de forças, muitas vezes motivadas em interesses políticos, que, ao meu ver, não deveriam pautar estas ações.
“A extrema direita tem uma agenda que não é possível com base na Constituição, exceto se a gente desconstituir toda a essência da Constituição Federal de 1988”
Na sua avaliação, por que o impeachment de ministros do Supremo virou uma obstinação da extrema direita no Brasil?
Olha, a extrema-direita tem se voltado contra o Supremo Tribunal Federal por alguns motivos. Primeiro porque eles tentavam e agora está cada vez mais comprovado, considerando o extenso relatório feito pela Polícia Federal de quase 900 páginas com todo destrinchamento, datas, organização, planejamento, quem mandava na tentativa da ação golpista que iniciou lá em 2022, final de 2021 e se estendeu até o 8 de janeiro de 2023, e também agora com a denúncia profícua da Procuradoria Geral da República, que amparado no excelente relatório, do ponto de vista de minuciosidade, feito pela Polícia Federal, a denúncia, por sua vez, é tecnicamente muito rigorosa. Primeiro que ela faz um recorte preciso que delimita quem está denunciando e por que está denunciando de forma objetiva, o que garantirá inclusive para as defesas dos acusados saberem do que estão se defendendo e por que estão se defendendo. Muitas vezes no Brasil, é bom que se diga, nós temos denúncias ofertadas pelo Ministério Público genéricas, o que compromete inclusive a qualidade da defesa. Neste caso não. Então nós temos um movimento de extrema direita que tentou o golpe no Brasil e quem impediu, em última análise, foi o Poder Judiciário e nós temos também uma agenda defendida pela extrema direita que na sua grande maioria é inconstitucional. Ou seja, ao analisar o texto constitucional de 1988, que é um texto para o nosso momento extremamente vanguarda, considerando as pautas dos obscurantistas que a extrema direita tem defendido, colidem com esse texto. A extrema direita tem uma agenda que não é possível com base na Constituição, exceto se a gente desconstituir toda a essência da Constituição Federal de 1988 e passar a desfazer direitos individuais, direitos coletivos já consagrados no ordenamento jurídico brasileiro.
“Anistiar aqueles que tentaram um golpe será um mau exemplo, um novo ataque à democracia”
E sobre a possibilidade de anistia para condenados no 8 de janeiro, isso seria o Congresso desautorizar o STF? Tenciona ainda mais as relações institucionais?
O Brasil tem uma oportunidade única de passar a limpo um episódio que não teve a oportunidade de fazer, ao meu ver, da forma como seria necessário no passado. Nós tivemos o golpe militar de 1964 e depois nós tivemos uma anistia ampla, geral e irrestrita que não puniu os agentes de estado que perseguiram, torturaram e mataram civis brasileiros. E agora nós temos uma tentativa de golpe que felizmente não teve sucesso e uma investigação feita por civis que está demonstrando ato por ato praticado e portanto as suas respectivas consequências. A punição daqueles que tentaram o golpe no Brasil, além de ter um caráter de puni-los, também tem uma finalidade pedagógica de demonstrar para toda a sociedade e para o futuro do Brasil que o Brasil não compactua com nenhuma tentativa golpista. Nós somos intolerantes a qualquer prática autoritária e isso fortalece a nossa democracia. As pessoas não podem perder de vista que democracia é a convivência pacífica de quem pensa diferente. Ela não é necessariamente a garantidora de uma melhora da qualidade de vida. Isso tem a ver com os governos eleitos, com os programas executados, mas ela é o único regime que permite que aqueles que pensam diferente possam conviver sem serem perseguidos. Anistiar aqueles que tentaram um golpe será um mau exemplo, um novo ataque à democracia. Nós precisamos ter a coragem e a sensatez de, independentemente de posição política e ideológica, ter um cordão sanitário de convivência social, e nesse cordão, ao meu ver, estão todos. Pessoas que peçam de direita, pessoas que têm um alinhamento à esquerda, mas esse cordão não contempla o autoritarismo. Então, toda vez que a gente estiver diante de uma tentativa autoritária no país, ela precisa ser combatida. Anistiar o 8 de janeiro é passar o seguinte recado para a sociedade brasileira: ‘Olha, nós toleramos tentativas golpistas, nós toleramos a implementação de autoritarismo no Brasil e isso me parece que além de completamente inadequado, considerando as investigações em curso que elas têm demonstrado, para o futuro do país seria totalmente prejudicial.
“Esta prerrogativa do Legislativo ter o seu orçamento e fazer as indicações neste volume não foi prevista pela constituição de 88”
A liberação de emendas parlamentares está no centro de um conflito entre Congresso e STF. O Executivo está usando o Supremo como linha auxiliar nessa questão?
A liberação das emendas parlamentares e o seu aumento, e aqui vale um breve contexto desta evolução. Em 2003, o orçamento previsto para pagamento de emendas parlamentares, naquele momento discricionária somente, era de 7 bilhões. Já para o ano de 2024, foram pagos quase 50 bilhões. O que aconteceu no meio do caminho? Em 2015, pela fragilidade política do governo Dilma, foi incluído as emendas impositivas obrigatórias, ou seja, aquelas que, independente de governos, parlamentares receberão. E lá em 2019, com o apoio e o incentivo do ex-presidente Bolsonaro, foi aprovado aquilo que ficou conhecido como orçamento secreto, que é a possibilidade da transferência de um caminhão de dinheiro sem acompanhamento e muitas vezes sem transparência, sem a definição de um projeto claro. Cinquenta bilhões é quase quatro vezes, mais ou menos, o orçamento de Salvador, considerando que o orçamento seja de 12, 13 bilhões. Em 2024 nós tivemos 50 bilhões, para 2025 é um pouco menor, de 40. O que acontece, esta prerrogativa do Legislativo ter o seu orçamento e fazer as indicações neste volume não foi prevista pela constituição de 88, ou seja, a gente está dando um poder para o poder legislativo que não foi previsto, não foi discutido na constituinte. Eu acho razoável que os parlamentares tenham a possibilidade, inclusive pela capacidade que têm de conhecer as suas regiões, conhecer as suas especificidades, estarem em contato permanente com a população, então me parece absolutamente razoável que o parlamento tenha a prerrogativa de indicar emendas. Agora, primeiro que tem que se discutir esse volume, qual o tamanho? Esse tamanho precisa ser compatível com o arcabouço fiscal, com a realidade financeira do país e também dentro de um princípio da razoabilidade. Segundo ponto, há que se ter transparência, essas indicações precisam estar vinculadas a projetos, a políticas públicas, precisa ser divulgado, quem indicou, quanto e onde, para que a gente possa ter um aperfeiçoamento do gasto público. Hoje, ao meu ver, muito do impasse existente entre Congresso e STF é justamente em razão dessa briga, dessa disputa que existe pelo orçamento. Então isso acaba sendo munição, ainda que velada, para outras disputas, o que acaba comprometendo a pauta do Supremo Tribunal Federal, muitas vezes as decisões, acaba comprometendo o funcionamento e as prioridades do Legislativo na hora de legislar. Esse assunto ele acaba contaminando a agenda desses poderes e por isso me parece um desafio desta nova presidência da Câmara e do Senado pacificar esse tema para que a gente volte a ter uma normalidade institucional.
A fixação de mandatos para ministros do STF pode produzir algum efeito prático no distensionamento entre os poderes?
A discussão de mandato para o STF deve ser considerada num contexto daquilo que seria um novo design institucional para o STF. Muitas democracias já consolidadas, Portugal, Espanha, Alemanha, estabeleceram mandatos para os ministros das Cortes Constitucionais. Eu, particularmente, acho saudável que tenha mandatos, mandatos longos, que não fiquem condicionados a governos A ou B, mas para garantir uma oxigenação permanente do Supremo Tribunal Federal. Agora, isso só faria sentido dentro, como eu falei, de um aperfeiçoamento maior, que não fique só localizado nessa questão de mandato. Não é só disso que se trata. Precisaria pensar uma outra estrutura e nesta nova estrutura aí sim cogitar-se a existência de mandato para ministros da Suprema Corte.
Política Livre