


















Gamificação do trabalho pelas plataformas de delivery põe em risco a vida de milhares de entregadores e enlouquece ainda mais o trânsito
A busca por dinheiro rápido levou a jovem Ariany do Nascimento Ruiz a encarar o alucinado trânsito de São Paulo com uma “bag” vermelha nas costas em cima de uma moto. Ela tinha 20 anos quando a filha pequena adoeceu, e a situação financeira apertou. Fazer delivery já era o ganha pão dos seus avós e, por isso, trabalhar para o iFood virou um caminho natural. Até que em um dia de temporal, quando a taxa paga aos entregadores sobe, Ariany acelerou além da conta.
William Cardoso
Neta de entregadores, Ariany se cadastrou no iFood quando a filha adoeceu e a situação financeira apertou
“Lançou promoção, a gente fica igual doida, né?”, conta ela. “Comecei a correr porque precisava de mais dinheiro, porque a promoção era só de uma hora. Na curva, o pneu deslizou e fui ao chão”, recorda. O acidente acabou custando três meses fora das ruas por causa dos ferimentos. O iFood, plataforma pela qual fazia entregas havia dois anos, ofereceu uma ajuda total de R$ 200, valor que ela conseguiria tirar em um único dia, de muita correria e promoções. “Foi tenebroso.”
Gamificação do trabalho
Quem encontra em aplicativo de entregas como o iFood uma oportunidade para conseguir alguma grana pode não perceber de imediato, mas logo entende que está em um jogo. É um desafio envolvente que faz com que o entregador atravesse bairros inteiros por pouco dinheiro, se sinta pressionado a ir para a rua quando chove e prefira rasgar o asfalto na labuta a ficar com a família em datas festivas ou nos fins de semana. Uma espécie de “gamificação” do trabalho, sem qualquer rede de proteção social e sem uma segunda chance em caso de “game over”.
“Tá pagando mais 3”. “Agora é mais 5”. “Estourou, é mais 8”. Quem encosta numa roda de motoboys pode até achar que eles estão em um jogo de cartas, mas o que esses números entregam é o valor a mais que o iFood está pagando em cima da taxa mínima de entrega — R$ 7,50 para quem usa moto e R$ 7 para quem vai de bicicleta — em períodos chamados de “promoções”, que podem durar minutos ou horas. “Mete marcha” é a gíria propagada pelos “motocas” que aceleram sobre duas rodas atrás de dinheiro.
Fundado em 2011, o iFood é uma empresa nacional que atua em mais de 1,5 mil cidades brasileiras e detém 80% do mercado de delivery no país.
Segundo a empresa, cerca de 110 milhões de entregas são feitas todo o mês por meio de 450 mil entregadores ativos no Brasil.
Há três anos, a média de entregadores ativos no iFood era de 193,5 mil. Atualmente, São Paulo concentra mais da metade dos motoboys cadastrados na plataforma: 250 mil.
Pesquisa contratada e divulgada em 2022 pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa os aplicativos, aponta que 70% dos entregadores ganham entre 1 e 3 salários-mínimos, ou seja, R$ 1,2 mil e R$ 3,6 mil em valores da época, respectivamente.
No último Dia dos Namorados, os casais da capital paulista que preferiram pedir comida em casa em vez de sair para jantar naquela noite gelada certamente nem perceberam, mas os entregadores estavam ainda mais ousados do que de costume. Era o game em ação. Os “motocas” foram incentivados a “meter marcha” por um incrível “mais 12”, que fez cada entrega com moto render R$ 19,50, quase três vezes o valor de um dia comum. A promoção durou das 18h às 20h29, hora do rush e de maior risco no trânsito paulistano.
Nesses momentos, entram em cena os “comandos” que funcionam como atalhos no jogo. Avançar o sinal vermelho, andar na contramão e subir em calçadas fazem parte da estratégia usada muitas vezes para fazer logo a primeira entrega e ficar disponível para a segunda, a terceira e a quarta – quanto mais rápido, maior a recompensa. Nas promoções, mais do que em outros períodos, acelerar pode ser muito vantajoso, quando se pensa só no dinheiro.
A matemática é simples. Com a tarifa básica mais R$ 12, quem faz quatro entregas em uma hora pode ganhar R$ 78. Fora da promoção, faria R$ 30. Ou seja, é como se o trabalho entrasse no “modo turbo”, duas vezes e meia mais vantajoso, em que o entregador vê motivo para acelerar alucinadamente.
Mensagens do app como “vai começar promo na zona da região São Paulo, vem! Extra de R$ 12,00 por rota completa” vira o combustível desse frenesi que compromete a capacidade de julgamento dos motociclistas.
Essas mensagens chegam a qualquer hora do dia, inclusive durante a madrugada, alertando para promoções que estarão ativas em pouco tempo. Quando o entregador vai para a rua, já era. Corre por cada centavo durante o período determinado pelo app como mais vantajoso e, depois, tem de se contentar com a tarifa básica porque está na pista.
A inteligência artificial do aplicativo controla o game, chama entregadores para a rua quando mais chove e faz o trânsito paulistano ficar ainda mais perigoso para todo mundo, inclusive para quem está atravessando a rua a pé ou dirigindo para casa depois de um dia exaustivo de trabalho.
No app, alertas de segurança como “tenha ainda mais cuidado em dias de chuva, sua segurança é prioridade!” aparecem em letras miúdas no pé do mapa, colocadas sutilmente sob um estrondoso “Seus ganhos estão próximos!”, em bold. É como uma inofensiva advertência de “jogue com responsabilidade” nas propagandas feitas pelas bets.

Perde e ganha do aplicativo:
Além das promoções, os motoboys são convocados pelo iFood a realizar desafios.
Normalmente, o app oferece essa possibilidade para quem está começando ou anda meio fora das entregas, pouco engajado.
São propostas como “faça 20 entregas em uma semana e ganhe R$ 600 de bônus”.
Segundo os motoboys, as primeiras entregas são fáceis. Quando se aproximam da 20ª, por exemplo, a coisa vai se tornando mais difícil.
O aplicativo direciona como derradeiras apenas aquelas que nenhum entregador gosta de fazer, como as que têm distância maior ou vários pontos de parada.
Se o motoboy recusa a corrida, isso impacta negativamente a avaliação dele no app, reduzindo as chances de pegar entregas melhores.
O “score” também depende das avaliações do cliente, do comerciante, do tempo logado no app e do atraso das entregas.
O motoboy tem 1min30s para aceitar ou rejeitar uma corrida.
Sete recusas seguidas, ele toma um gancho de 15 minutos sem poder fazer corrida.
Se ele recusa a primeira que toca depois do término da punição, pega mais 15 minutos de gancho.
Recentemente, o iFood lançou um novo programa para engajar os entregadores, chamado Super. Ele cria as categorias “ouro” e “diamante” de parceiros e prevê benefícios de acordo com o score e o número de entregas feitas ao longo de 3 meses.
Quem realiza 650 entregas e mantém o score 3 nesse período vira “diamante” e acumula selos que podem ser trocados por créditos na loja do iFood, bônus anual de até R$ 3 mil, uma espécie de 13º salário de quem é empregado CLT, entre outras vantagens.
LARGADOS À PRÓPRIA SORTE
Danilo M. Yoshioka
Durante as semanas em que percorreu as ruas de São Paulo para entender como vivem os entregadores, no mês de junho, o Metrópoles encontrou pessoas largadas à própria sorte, sem qualquer respaldo pela falta de vínculo trabalhista com os aplicativos, e sem uma estrutura de apoio.
Quem sai para defender a sobrevivência no trânsito paulistano com as entregas não encontra, muitas vezes, nem um local para se abrigar. Na hora de apertar o “pause” no jogo imposto pelos aplicativos, motoboys e ciclistas penam para achar um lugar adequado para esquentar uma marmita, ir ao banheiro, recarregar a bateria do celular ou ao menos descansar as pernas até retornar ao trabalho.
Os pontos de apoio são raros em uma cidade imensa como São Paulo. O iFood tem apenas dois bem estruturados, no Tatuapé, zona leste, e em Moema, zona sul, além de uma tenda em um hipermercado no Tucuruvi, zona norte, que oferece só mesa, cadeira e tomada — não há nem água.
O iFood tem dois tipos de entregadores:
Os OLs prestam serviço para uma empresa parceira do aplicativo e costumam contar com bases próprias, onde conseguem descansar, esquentar comida, hidratar-se e carregar o aparelho celular.
Os nuvens são aqueles que fazem entrega por conta própria, sem qualquer vínculo, e os que mais dependem dos pontos de apoio oficiais do iFood. Estão em carreira solo nas ruas paulistanas.
Na contramão do aumento no número de entregadores, alguns pontos de apoio estão sendo fechados. Um deles ficava no Itaim Bibi e vivia lotado. Na primeira semana de junho, entretanto, uma folha de papel anunciava o encerramento das atividades e orientava os usuários a procurar pelos postos do Tatuapé, a 17 km dali, ou de Moema, a 4 km.
“O ponto de apoio é importante para esquentar marmita, descansar, recarregar o celular”, diz Felipe Souza, 26 anos, que trabalha há mais de cinco anos com entregas em bicicleta. “Essa base [Itaim Bibi] está fechando, e muita gente vai esquentar marmita em restaurantes e bares. Muitos não vão trazer mais e terão que comprar”, lamenta.
Também são raros os shoppings que têm local adequado para receber quem busca os pedidos e gera riqueza para restaurantes e lanchonetes das praças de alimentação. Em alguns lugares, como no SP Market, na zona sul, motoboys não podem ficar na área do próprio shopping esperando por novos pedidos. Não há qualquer apoio a eles, que só podem entrar, pegar os alimentos empacotados nas lojas e sair imediatamente.
O próprio iFood criou uma zona de restrição no app, que empurra os entregadores para fora do shopping, caso queiram aguardar por novas rotas. Sem local para permanecer nas proximidades da praça de alimentação, que é um polo gerador de pedidos, eles improvisaram um estacionamento no canteiro central da avenida em frente ao SP Market, com lonas estendidas em meio a árvores.
William Cardoso
Com tendas e cadeiras de plástico, motoboys improvisam ponto de apoio na rua
“Cada um dos motocas pegou cadeira, tenda, e subiu nas árvores para amarrar. A gente que se esforçou para ter o mínimo de decência aqui para esperar as corridas e levar o ganha-pão para casa. O iFood não ajudou em nada”, conta Bruno Melo Santos, 24 anos, motoboy há um ano e meio.
“Isso não é justo, porque estamos levando dinheiro para o shopping. A maioria dos estabelecimentos tem mais pedido de iFood do que clientes, em dia de semana.”
Bruno Melo Santos
Situações semelhantes ocorrem em outros centros de compras da cidade. Em alguns casos, o improviso acaba em multa que pode custar um dia de trabalho.
O entorno do Shopping Pátio Paulista, na Rua Treze de Maio, é um pesadelo para quem quer estacionar a moto para retirar pedidos na praça de alimentação. Em uma sexta-feira, o Metrópoles flagrou uma ação da Polícia Militar que terminou com dezenas de entregadores multados por parar em local proibido por falta de vagas.

“Vim coletar o segundo pedido nesse shopping, por uma taxa de R$ 7, e estou saindo com uma multa de R$ 200. A rotatividade de motoboys aqui é imensa, não dá conta. Deveria ter um local adequado para nós.”
Robinson Moura
LIVRES OU REFÉNS DO ALGORITMO?
Em sua imensa maioria, os entregadores defendem a cartilha do empreendedorismo e a liberdade pelo fato de estarem na rua, sem horário pré-determinado ou cobranças de um chefe, como acontece nos empregos com carteira assinada (CLT).
Embora tenham consciência de que os valores pagos por entrega são muito baixos, ainda assim dizem que isso é melhor do que os salários irrisórios pagos pela indústria e pelo setor de serviços. Geralmente, gostam do que fazem e são viciados na adrenalina sobre duas rodas.
Danilo M. Yoshioka
Dessa maneira, alimentam a máquina que faz o jogo girar e que extrai tudo o que pode. Muitos não percebem, mas o “chefe” de quem tanto fogem é o algoritmo ditando as rotas, estabelecendo critérios nada transparentes sobre quanto devem ganhar e se eximindo de responsabilidades sobre acidentes e transtornos ocorridos nas ruas.
Aliás, histórias sobre acidentes não faltam nas rodas de motoboys que se formam diante dos grandes pontos de venda de delivery, como os shoppings. Quem tomba e demora meses para conseguir se levantar de novo fica totalmente desamparado.
“Fiquei cinco meses parado depois de uma queda. Não estava preparado para isso, fiquei apertado. Pago aluguel, tenho uma filha pequena, e isso aí mexeu muito com o meu cotidiano. Você fica sem apoio de ninguém, né? Porque a gente fica por conta própria na rua”.
Lucas Rodrigues
ACIDENTES, CONIVÊNCIA E OMISSÃO
Moto no chão e manta térmica sobre um corpo estendido no asfalto. A cena é bastante comum e já não causa surpresa para quem enfrenta o trânsito paulistano. Em 2024, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) atendeu 9.898 ocorrências envolvendo motos na capital. Isso significa uma ambulância cruzando a cidade para socorrer um motociclista a cada 53 minutos, em média.
Em 2024, a cidade de São Paulo registrou 483 mortes de motociclistas, aumento de 20% em relação a 2023.
Foram 9.898 ocorrências atendidas pelo Samu na capital paulista ao longo de todo o ano passado, média de 1 a cada 53 minutos.
No mesmo período, só a rede municipal registrou 4.084 internações relacionadas a motos.
Em junho deste ano, 168 estavam em acompanhamento nos Centros Especializados em Reabilitação (CERs).
Idealizadora da Rede Lucy Montoro, do governo estadual, a médica e professora Linamara Rizzo Battistella conhece o drama dos acidentes para além dos números, com a reabilitação de vítimas que chegam destroçadas, literalmente, ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Os relatos dos pacientes revelam histórias de quem passou por muitas frustrações na vida e que encontrou no trabalho sobre duas rodas uma forma de ganhar dinheiro e se sentir mais relevante.
“A moto dá uma sensação de que sou dono do mundo. Isso vai aparecendo na conversa. Mas também aparece a frustração do que perdeu, do medo do futuro. Às vezes, o desgaste que isso causa na família. É um processo de muito sofrimento em um jovem que ainda está em formação”, diz Linamara.
Para ela, a sociedade está “totalmente despreparada” para lidar com a nova realidade envolvendo os entregadores, é “conivente” com um modelo de negócio que alimenta a pressa e a urgência, e “omissa” na responsabilidade pela preservação das vidas desses profissionais.
William Cardoso
Linamara Rizzo Battistella, da Rede Lucy Montoro, considera que o modelo de trabalho dos aplicativos precariza ainda mais o trabalho dos motoboys
“Quando a gente contrata esse serviço, a gente finge que não existe a legislação trabalhista, que não existe medicina do trabalho, que não existe saúde ocupacional. Esses jovens que vivem desse modelo de trabalho são privados de todo o mecanismo de segurança social”, completa Linamara, citando também que esse comportamento é patrocinado por multinacionais, como fabricantes de motos.
Em 2024, o mercado brasileiro registrou 1,87 milhão de motos zero km emplacadas, um aumento de 18,6% em relação a 2023.
Neste ano, as vendas continuam subindo. Só no primeiro semestre, foram emplacadas 1 milhão de motocicletas.
Calcula-se que cada paciente que passa por um tratamento convencional de reabilitação, que dura de seis a oito meses, e que, eventualmente, necessite de uma órtese ou uma prótese custe entre R$ 2 milhões e R$ 3 milhões.
“Ele [motoboy] precisa reduzir a velocidade agora para poder desfrutar no futuro. Ele precisa entender que ele não é de borracha nem de aço, e que o acidente acontece, e acontece com todo mundo. Quem se acidenta não volta para a vida produtiva, a família fica abandonada. É devastador ver isso.”
Linamara Rizzo Battistella
VOLTAR A FICAR DE PÉ
William Cardoso
Um dos pacientes que busca se reerguer com apoio da rede estadual de reabilitação é o ex-motoboy Matheus Henrique Santos Fonseca, de 27 anos. Ele está lá porque o acidente que sofreu foi muito mais grave que o de Ariany e Lucas.
Em março de 2022, Matheus descia um morro durante uma entrega de pizza quando foi fechado por um carro. Voou e caiu sentado. “Nessa, eu já não sentia mais as pernas”, diz. “Fiquei o tempo todo acordado, só esperando a ambulância chegar”, afirma. O motorista fugiu e ele foi socorrido por pessoas que estavam em uma adega.
Depois de uma cirurgia em Itaquera, na zona leste paulistana, ele recebeu a notícia de que não voltaria a andar. “O mundo cai, né? A gente não quer ficar preso em algum canto.” À época, fazia um ano e meio que tinha se tornado motoboy, depois de perder o emprego como operador de máquinas. Para ele, era a oportunidade de ganhar dinheiro e ter liberdade para fazer o próprio horário.
O acidente o colocou na cadeira de rodas, situação difícil para quem não gostava de depender dos outros. Embora a responsabilidade pelo acidente que o vitimou tenha sido do motorista do carro, Matheus tem consciência de que, muitas vezes, são os próprios motoboys que se colocam em risco “para atender mais pedidos, para conseguir uma renda melhor, para colocar mais dinheiro no bolso”.
O motoboy está em recuperação em uma das unidades da Rede Lucy Montoro na capital. Recentemente, passou a usar o exoesqueleto para se manter em pé e caminhar. É uma jornada que envolve a força necessária para carregar os 80 kg da máquina, além do peso do próprio corpo.
“É uma emoção ficar em pé, depois de tanto tempo sentado.”
Matheus Henrique Santos Fonseca
INSEGURANÇA E ANSIEDADE
Em junho passado, a Ação da Cidadania, uma ONG fundada em 1993 pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, rompeu com o iFood, após uma parceria iniciada durante a pandemia de Covid. A entidade apurou que um terço dos entregadores vive em situação de insegurança alimentar, em meio a jornadas exaustivas e de alto risco, e tentou estabelecer uma ação conjunta com a plataforma para melhorar a situação dos trabalhadores.
“Tentamos, por anos, realizar esse estudo em parceria com o iFood, a maior plataforma de entregas do país, por entender que a empresa tem responsabilidade direta sobre a realidade de seus entregadores. Estivemos abertos ao diálogo, fizemos convites, oferecemos escuta e buscamos construir pontes. No entanto, a falta de retorno efetivo — inclusive em momentos públicos de debate — nos levou a reavaliar essa relação”, diz a ONG.
Além dos riscos físicos, a rotina árdua dos entregadores provoca um profundo impacto mental, seja pelo estresse do trânsito, seja pela dinâmica do trabalho que estimula e premia a pressa. Para muitos entregadores, o sinal sonoro das notificações do iFood, que repete exaustivamente o nome da empresa no celular, é um tormento que fica ecoando dentro da cabeça nas horas em que não se está trabalhando.
William Cardoso
Dinâmica do trabalho que estimula e premia a pressa é criticada por representantes dos motoboys
O jogo do delivery traz ansiedade até para quem usa o app esporadicamente, apenas como complemento de renda. Estudante de pós-graduação no MBA em logística internacional e comércio exterior, Matheus Renato Santos, 20 anos, faz entregas principalmente durante os fins de semana. Para ele, o aplicativo colabora com a ansiedade. “O estresse do trânsito, a falta de valorização por parte dos aplicativos, a vulnerabilidade que o motoboy enfrenta a todo momento, o risco de sofrer um acidente. Você acaba se estressando bastante, com coisas bestas, coisas fúteis”, diz.
O médico Elton Kanomata, psiquiatra no Hospital Israelita Albert Einstein, compara a gamificação do app de delivery a jogos de azar, como o do Tigrinho, que usam uma arquitetura para que os usuários fiquem “continuamente engajados”.
“Existem mecanismos desses jogos que ativam, de uma forma intermitente, pequenos estímulos no nosso sistema nervoso central, principalmente numa área do cérebro que está relacionada à área da recompensa e do prazer”, explica. Segundo ele, a política de recompensa e bonificação da plataforma faz com que os entregadores fiquem cada vez mais assíduos e conectados.
“Essa hiperconectividade faz com que, nos momentos de descanso, a pessoa perceba que pode estar perdendo oportunidades. Isso faz com que ela, mesmo em momentos de repouso, possa ficar ainda pensando no trabalho, de que possa estar perdendo oportunidade de trabalho.”
FUTURO
O iFood tem mais de 55 milhões de clientes cadastrados em todo o país — 80% do mercado de delivery no Brasil — e fatura mais de R$ 7 bilhões por ano, segundo os dados mais recentes divulgados pela Prosus, multinacional holandesa que controla a empresa desde 2022. Atualmente, tem como principais concorrentes os apps Rappi, Uber Eats, Aiqfome e 99Food.
Esse mercado bilionário tem atraído outras gigantes mundiais. Nos últimos meses, a chinesa Meituan, que opera em Hong Kong e na Arábia Saudita, anunciou sua entrada no Brasil com o aplicativo Keeta. Nas ruas, a reportagem apurou que os chineses têm feito incursões entre os “motocas” para quebrar com a hegemonia do iFood. Entregadores relatam que representantes da Meituan têm feito pedidos via iFood e, assim que o motoboy chega, oferecem até R$ 150 por duas horas de conversa sobre o aplicativo concorrente.
Na lista de queixas dos entregadores, além do valor das taxas pagas pelas entregas, da falta de pontos de apoio nas ruas e do abandono em caso de acidentes, está a exploração até na hora de fornecer os equipamentos de trabalho. Embora rodem a cidade inteira fazendo propaganda do iFood com suas bags vermelhas, os entregadores precisam botar a mão no bolso caso queiram comprá-las. Em junho, uma mochila nova com isopor saía por R$ 155,71. Já uma camisa com a logomarca da empresa estampada custava R$ 56,91 na “Loja do Entregador”, dentro do app. O iFood também cobra frete de R$ 14,79 por uma entrega que leva de 2 a 4 dias para a cidade de São Paulo. Ironicamente, é duas vezes o valor pago pelo aplicativo para um entregador por uma rota na capital.

A ironia cruel desse jogo do delivery é que os entregadores de comida precisam abrir mão de suas próprias refeições para conseguir uma renda minimamente digna. Há três anos fazendo entregas, o casal Joilton da Silva, 63 anos, e Claudete Gloria da Silva, 55 anos, que são os avós da motogirl Ariany, citada no início desta reportagem, conta que só tem conseguido tirar pouco mais de um salário-mínimo (R$ 1.630) por mês trabalhando 10 horas por dia, incluindo fins de semana e feriados.
William Cardoso
Casados, Joilton da Silva e Claudete Gloria da Silva fazem entregas juntos
No início de junho, o Metrópoles acompanhou a jornada do casal em um dia chuvoso e frio na capital paulista. Naquele dia, apesar de todo o esforço, Joilton, que pilota a moto, e Claudete, que carrega as entregas dentro da bag na garupa, ficaram a cinco corridas de “destravar” um bônus de R$ 600 por determinado número de entregas realizadas.
O relógio se aproximava das 16h quando eles retornaram à sua casa para almoçar. “Chega a essa hora e o estômago está nas costas”, disse Joilton, que havia comido um salgadinho durante toda a jornada para “tapear” a barriga. Depois do almoço, a única refeição robusta do dia, eles voltaram às ruas para o pico de entregas da noite.
“Ficar nas ruas para cima e para baixo com fome não é fácil. E tem muitos que ficam.”
Claudete Gloria da Silva

“Nós não saímos para canto nenhum, a não ser trabalhar.”
Joilton da Silva
REGULAMENTAÇÃO
Em maio deste ano, a Câmara dos Deputados deu início à discussão sobre regulamentação de serviços de entregadores por plataformas digitais e mototaxistas, a partir do Projeto de Lei 2479/2025. Entre outros assuntos, a proposta sugere um piso de R$ 10 por entrega de até 4 km e R$ 2,50 adicionais para cada quilômetro excedente, além de R$ 0,60 por minuto por espera na retirada ou entrega, a partir do 11º minuto.
Gilberto Almeida dos Santos, o Gil, presidente do Sindimoto-SP, afirma que, sem regulamentação, as empresas fazem o que querem. Para ele, a liberdade almejada pelos entregadores cabe na CLT, mesmo com a flexibilização dos horários de trabalho. “Dar uma proteção, com reajustes anuais baseados no INPC (índice de inflação ao consumidor), tendo como fórum para ser a balizadora das discussões a própria Justiça do Trabalho, que é onde esses trabalhadores têm de estar”, diz.
Rafaela Felicciano/Metrópoles
Representantes querem alguma regulamentação
OUTRO LADO
O iFood afirmou ao Metrópoles que não incentiva comportamentos de risco, e que os tempos de entrega têm parâmetros realistas e seguros, “respeitando os limites de velocidade e as condições do trânsito”. A empresa destaca, ainda, que tem a segurança dos entregadores como prioridade, oferecendo seguro contra acidentes durante a rota de entrega e no trajeto de volta para casa (a partir de R$ 300 para lesão temporária e de R$ 120 mil para a família do entregador em caso de morte no trabalho).
“As campanhas de incentivo, como promoções e desafios, são totalmente opcionais e têm como objetivo ampliar a previsibilidade de ganhos dos entregadores, especialmente em momentos de alta demanda, como dias de chuva ou horários de pico”, afirma a empresa. “O iFood não incentiva, em nenhuma hipótese, comportamentos de risco”.
O iFood diz que reconhece a importância dos pontos de apoio e afirma estar comprometido em oferecer o melhor suporte possível aos parceiros em diferentes cidades brasileiras, incluindo pontos próprios, bem como parcerias com instituições públicas e privadas.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa os principais aplicativos, diz que as plataformas associadas mantêm estratégias e diretrizes próprias em relação aos entregadores dentro de cada modelo de negócio. “Nesse sentido, são observados alguns princípios inerentes à atividade, como o reconhecimento da natureza independente e a flexibilidade dos profissionais parceiros, que prestam serviço em condições similares ao de autônomos”. Segundo a entidade, as empresas não estimulam longas jornadas e velocidade acima do permitido.
A Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasece) afirma que o delivery é um recurso importante dentro da jornada de compra contemporânea, e que a dinâmica de entregas por aplicativos envolve múltiplas variáveis. “Cada empreendimento avalia como melhor integrar essa dinâmica à sua operação, buscando sempre garantir conveniência, segurança e boa experiência para lojistas, entregadores e clientes”, diz.
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