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Golpe do Pix e laranjas do Brás ligam arsenal de armas a máfia chinesa

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Golpe do Pix e laranjas do Brás ligam arsenal de armas a máfia chinesa

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Uma folha de caderno traz uma lista de nomes, CPFs e modelos das armas de integrantes de um clube de tiro na zona leste de São Paulo. Um detalhe que chama a atenção é que a maioria dos nomes, escritos à mão, são chineses. Imagens do local em funcionamento confirmam a grande concentração de orientais. Em uma delas, um homem sorridente aparece segurando um fuzil customizado com mira telescópica. Em outra, um chinês sério carrega uma espingarda calibre 12.

Polícia Federal

Chinês portando fuzil customizado (à esquerda) e investigado Zhifeng Jin com espingarda (à direita)

A Uzi Comércio de Armas e Munições, hoje suspensa judicialmente, costumava funcionar no mesmo galpão que o clube de tiro com nome similar. O estabelecimento se autointitula a “maior escola de tiro indoor de SP”. Frequentado pela comunidade chinesa, o galpão na Vila Bela, próximo à divisa com a cidade de São Caetano, também é conhecido no meio policial por oferecer cursos a integrantes da Polícia Militar (PM).

Artur Rodrigues/Metrópoles

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Fachada do clube de tiro Uzi, na zona leste de SP

O que o marketing do clube não diz é que o local é apontado como fachada para um braço da máfia chinesa envolvido com crimes que vão do estelionato ao comércio ilegal de armas, segundo apuração da Polícia Federal (PF) e do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público paulista (MPSP).

Armar chineses

O esquema descrito pela investigação começava com a arregimentação de laranjas para abrir contas bancárias para serem usadas em golpes virtuais. O dinheiro arrecadado das vítimas era transferido para empresas de fachada e acabava até na compra de armas pelos criminosos chineses.

O espaço destinado ao material bélico era um projeto pessoal do empresário chinês Zou Chenglong, que é casado com a filha do mafioso chinês Huang He, extraditado para o seu país natal. Logo na primeira reunião para a criação do estabelecimento, Chenglong chegou a confidenciar que “queria andar armado e armar pessoas de nacionalidade chinesa”, segundo o depoimento de um sócio do local, que é policial militar. Algum tempo depois, a empresa compraria R$ 1 milhão em armamento e munição.

Polícia Federal

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Imagens de armas que constam em inquérito da Polícia Federal

Do golpe do emprego ao arsenal

O endereço em um bairro afastado do centro, com um desenho de uma metralhadora israelense Uzi na fachada, continuaria passando batido se não fosse a descoberta de uma onda casos de estelionato. Uma instituição de pagamentos, a Stone, esbarrou no caso devido à movimentação atípica de 11 contas de pessoas físicas, que movimentaram R$ 4 milhões em apenas dois meses, em 2022. O grande volume de dinheiro circulando em nome de pessoas que não tinham lastro financeiro para isso era acompanhado de uma cascata de boletins de ocorrência denunciando a prática conhecida como “golpe do emprego”. 

A instituição financeira Stone identificou padrão de pagamento suspeito em 11 contas de pessoas físicas, que movimentaram R$ 4 milhões em apenas dois meses, em 2022. Nas fotos usadas para a criação de algumas das contas de laranjas, apareciam chineses atrás. Diversos boletins de ocorrência foram feitos por vítimas de estelionato que notificaram a transferência de valores via Pix a essas contas.

Os valores obtidos por meio do crime criavam uma espécie de fundo paralelo, com conexões com a máfia chinesa. Assim que depositados pelas vítimas, os valores eram rapidamente transferidos a empresas de pessoas daquela nacionalidade, sendo algumas de fachada e outras ativas, que faziam transações entre si.

Parte dos valores era enviada para a Uzi Comércio de Armas e Munições, na zona leste de São Paulo. O sócio majoritário da empresa é genro de um mafioso, extraditado para a China por pertencer a uma máfia daquele país.

Os valores vultosos recebidos de empresas e pessoas que não eram colecionadores ou atiradores fez a polícia suspeitar que a Uzi Comércio de Armas era utilizada para que chineses tivessem acesso a armamentos e munições facilmente e também para o comércio ilegal desse tipo de produto.

O esquema funciona da seguinte forma: a vítima recebe uma mensagem de um desconhecido pelo WhatsApp com a promessa de um trabalho dos sonhos. Basta curtir vídeos no Youtube e avaliar restaurantes no Google para receber pagamentos de R$ 100 ou R$ 200. Nos primeiros dias, funciona. Após algumas curtidas e avaliações, os golpistas pagam pequenas quantias. Após fidelizada, a vítima recebe a proposta de incrementar seus ganhos. Para isso, ela teria de depositar cifras de até R$ 1 mil na conta dos golpistas e, em troca do investimento e de mais curtidas, receberia até R$ 5 mil. A contrapartida nunca vem e a pessoa descobre que caiu em um golpe.

“Fui vítima de fraude cibernética (golpe do Pix). Prometiam lucros seguindo e curtindo páginas de supostos parceiros e cumprindo tarefas de pré-pagamento onde, após depósitos efetuados em operações com criptomoedas, obtém-se um lucro de 30% do valor depositado”, relatou um dos lesados no boletim de ocorrência. O homem contou que os valores começaram pequenos e chegaram até R$ 15 mil. Quando as vítimas se davam conta do que havia ocorrido, os golpistas deixavam de responder. A essa altura, o dinheiro delas já estava longe.

Não havia a quem recorrer porque os titulares das contas eram na verdade laranjas cooptados em comércios populares do centro, em troca de dinheiro fácil — um contingente de pessoas desempregadas ou que recebiam baixos salários, moradores da periferia da cidade e com histórico de recebimento de benefícios como o Auxílio Emergencial.

Luiz Vassallo/Metrópoles

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Carregadores de produtos na região da rua 25 de Março

Chinês na foto

Um detalhe sutil na apuração acabou denunciando a digital desse braço da máfia chinesa. Para abrir as contas de pagamento na Stone, os correntistas tinham que fazer uma foto segurando um documento de identificação. Atrás de alguma dessas fotos, apareciam pessoas com características orientais. Em parte dos casos, os brasileiros titulares das contas sequer apareciam e, quando a câmera abria para a foto de cadastro, uma pessoa de traços orientais estava diante da câmera do celular. O rastreio do dinheiro levou a uma cadeia de comércios pertencente a cinco pessoas do país asiático.

Reprodução

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Um dos destinatários apontados, por exemplo, era o comerciante Lingbin Xia, sócio da empresa Ouro Preto Roupas e Acessórios e ex-sócio da JKL Comércio de Roupas, que ficam no Brás. Ambas as lojas receberam valores de operações suspeitas identificadas pela Stone e, assim como outras beneficiárias, compartilhavam o mesmo contador. Sem antecedentes criminais no Brasil, Xia tinha sido incluído na Difusão Vermelha da Interpol após a China registrar contra ele a acusação de “causar brigas e provocar problemas”, conforme a investigação.

Artur Rodrigues/Metrópoles

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Rua Oriente, no Brás: quadrilha atuava na região

A apuração encontrou uma série de ligações entre sócios. A JKL Comércio de Roupas está no nome da chinesa Weiwei Du, que por sua vez tem um filho com Zhifeng Jin, ex-sócio da Ouro Preto. O casal e o comerciante Ligbin Xia vieram da mesma província do empresário Zou Chenglong, aquele que é casado com a filha de um mafioso chinês extraditado.

Embora não tenha empresas de roupas registradas em seu nome e afirme apenas intermediar aluguel de boxes, Chenglong é suspeito de manter uma operação milionária de contrabando. A polícia apreendeu mais de R$ 50 milhões em produtos ilegais no endereço comercial usado pelo chinês no Brás. O assunto das falsificações surgiu em conversa em aplicativo de mensagens, segundo a polícia. Um sócio dele mandou a foto de dois frascos de perfumes com embalagens parecidas. “Primeiro é nosso. Segundo original”, disse o homem.

É aí que o clube de tiro Uzi aparece na história de novo. A Polícia Federal e o Ministério Público suspeitam que o local só tem a estrutura que tem hoje graças ao dinheiro vindo de empresas e chineses envolvidos no esquema de estelionato. Entre os indícios disso está o uso de uma conta da Ouro Preto Roupas e Acessórios e a de outras pessoas jurídicas para, entre outras coisas, “adquirir chapas de aço balístico empregadas na Uzi”, segundo a investigação.

“Um bom lugar para brincar com armas”

Quando o clube de tiro foi inaugurado no segundo semestre de 2022, houve comemoração em um grupo no aplicativo WeChat do qual Chenglong e Lingbin Xia faziam parte. “Um bom lugar para brincarmos com armas”, comentou um dos integrantes. Em outra conversa, Chenglong, sócio majoritário do local, demonstra satisfação com o possível lucro devido à grande quantidade de clientes chineses, volume que ficou comprovado depois pela lista de nomes apreendida pela polícia citada no início da reportagem.

Além de Chenglong, o clube de tiro tem quatro sócios brasileiros. Três deles — um policial militar, sua esposa e um conhecido instrutor de tiro — são citados apenas como testemunhas no inquérito. Já o nome de Ivan Batista de Souza Junior aparece como suspeito de parceria com o chinês em um esquema para usar o local para lavagem de dinheiro e comércio ilegal de armas.

Ivan tem uma empresa de perfumes, a Intense Fragrance, suspeita de ser outra empreitada ilegal tocada em parceria com Chenglong, com foco nas falsificações. A julgar pelo crescimento patrimonial dele nos últimos anos, a polícia acredita que os negócios estão indo melhor do que parecem. Com renda declarada de R$ 6.500, ele e a esposa têm um patrimônio avaliado em R$ 3,8 milhões. A coleção de nove carros declarados inclui duas Porsche e uma moto Harley Davidson.

Polícia Federal

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Dinheiro em poder dos suspeitos e apreendido pela PF

O assunto dinheiro era motivo de discórdia com os demais sócios. Em um diálogo entre Ivan e a esposa, Paloma Ramalho Souza, é citado que o investimento conjunto com o empresário Chenglong no local chegou a R$ 4,5 milhões. “Ivan disse ainda que Zou Chenglong estava disposto a gastar R$ 9.000.000,00 para mandar matar os demais sócios, pois, além de não terem contribuído financeiramente, estavam tirando proveito da UZI”, aponta a investigação.

ArsenaL

Em dezembro passado, o Ministério Público paulista denunciou 22 duas pessoas acusadas de participar da organização criminosa supostamente liderada por Chenglong. Segundo a denúncia, obtida com exclusividade pelo Metrópoles, trata-se de uma organização armada, corroborada pelo fato de que “seus membros costumavam, frequentemente, portar e armazenar armas de fogo, possuindo verdadeiro arsenal bélico”.

As fotos nos celulares dos alvos da operação ajudam a sustentar essa afirmação. Em uma delas, Ivan, o sócio de Chenglong, aparece sorrindo com um copo na mão à frente de uma mesa, em que há pedaços de linguiça, um copo de cerveja e duas armas: uma espingarda e um armamento customizado com mira. Em outra, Zhifeng Jin, ex-sócio da empresa Ouro Preto, também posa com uma espingarda calibre 12 no local, do qual era “membro VIP”.

Reprodução

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O empreendimento, porém, recebeu dinheiro de diversas pessoas físicas que não tinham qualquer ligação com o comércio. Ou seja, depósitos de pessoas que não são caçadores, atiradores ou colecionadores de armas, os chamados CACs, não têm armamento registrado, não constam da relação de pessoas que compraram armas ou munições e nem são sócios da empresa ou do clube de tiro. Foi o caso de Huang Peiqiang, cunhado de Chenglong e filho do mafioso chinês extraditado, que enviou R$ 42 mil para a Uzi. 

Já o chinês Jie Wang depositou tanto dinheiro que a polícia passou a apontá-lo como sócio oculto do local – entre 2022 e 2023, os valores chegaram a R$ 779 mil. Os depósitos foram feitos por meio de uma empresa de roupas que movimentou a surpreendente cifra de R$ 113 milhões entre 2020 e 2023. Essa mesma empresa também recebeu R$ 1,4 milhão em dinheiro vivo, dos quais R$ 402 mil não tiveram os depositantes identificados. Essas transações levantaram a suspeita de uma prática chamada smurfing, que consiste em fracionar grandes quantidades de dinheiro para esconder movimentações atípicas dos órgãos de controle, como o Coaf.

Para os investigadores, há indícios de que a quadrilha estruturou tanto a empresa de armas como o clube de tiro com dinheiro oriundo do crime e com o intuito de “ter acesso a armas de fogo e munição mais facilmente”

A conclusão é embasada pelo depoimento do sócio da empresa, o policial militar Erick Alves Moreira. Ele relatou à polícia que Chenglong, em sua primeira reunião com ele sobre o Uzi, disse que queria armar chineses.

A PF afirma ter constatado que “quase todos os clientes que compraram munições dessa empresa no ano de 2022 são chineses registrados como CAC, fato que sugere a utilização dessas pessoas para aquisição de munição além da cota permitida em lei para fins escusos”. Um documento encontrado pela polícia traz uma relação de armas e compradores. Na folha, consta uma anotação de caneta: “Equipamentos vendidos sem registro até o momento”.

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A empresa de armas Uzi foi suspensa judicialmente, mas o clube de tiro segue na ativa. O local, inclusive, abrigou cursos de capacitação para policiais militares. Enquanto corre a investigação, há uma briga judicial do grupo de Chenglong e Ivan contra Erick e a mulher. A PF diz não ter encontrado qualquer indício de ilegalidade praticada pelo PM no caso.

O que dizem os acusados

Advogados dos apontados como participantes do esquema afirmam que as acusações são xenofóbicas e fantasiosas.

No processo, o advogado de Ivan Batista de Souza Junior afirma que “não há a descrição de fatos concretos que ligam o réu à suposta organização criminosa” e que não há alegação de que ele tenha recebido valores decorrentes de infrações penais. A defesa nega irregularidades em relação à sua empresa e também afirma que o seu patrimônio foi  “adquirido há mais de cinco anos ou adquirido com recursos de outros bens.”

“Da investigação se infere que a Stone notificou suposta infração penal, foram identificados ‘laranjas’ que recebiam valores supostamente provenientes de golpes de internet, os quais repassavam tais valores a empresas. Daí por diante, a acusação passa a se basear em dilações xenofóbicas. Diante do pagamento por um dos sócios dessas empresas investigadas (de nacionalidade chinesa), no valor de R$ 25.000,00, para a UZI e do fato de o sócio da UZI (Zou Chenglong) também ser de origem chinesa, passa a considerar que todas são integrantes da máfia e a investigá-los, daí em razão do patrimônio do réu”, diz o advogado.

A defesa de Zhifeng Jin e Weiwi Du afirma que, “dada a fase processual, não há interesse em responder” aos questionamentos feitos pela reportagem.

O Metrópoles procurou a defesa dos demais acusados na denúncia, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

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