Xin Mo, um vendedor chinês de 19 anos, voltava do trabalho pela rua Barão de Ladário, no Brás, quando um carro parou ao seu lado. Em segundos, foi puxado para dentro do Ford Ecosport e se viu sob a mira de uma arma. Era fim de tarde, e a multidão atraída pelas mercadorias baratas do bairro que fica no centrão paulistano já havia se dispersado. No trajeto até o cativeiro, ele foi encapuzado, amarrado e agredido. Passou horas de terror na escuridão. O sofrimento só acabou no dia seguinte, quando foi libertado, após seus pais pagarem um resgate de R$ 300 mil em dinheiro vivo. Apavorado, o jovem abandonou São Paulo e voltou para a China.
A extorsão sofrida por Xin Mo aconteceu há 10 anos, mas não difere dos métodos utilizados pelos criminosos que capturaram o comerciante Yi Chen, em dezembro passado. O homem de 44 anos também foi sequestrado após deixar a loja onde trabalhava, no Shopping Mundo Oriental, um dos inúmeros comércios de produtos populares — a maioria chineses — na região da 25 de Março, famoso centro de compras que fica a menos de 2 quilômetros do Brás. Às 4h40 do dia seguinte, o irmão dele, que mora na China, recebeu uma mensagem de vídeo em que o parente aparecia com os braços e as pernas amarrados e em prantos. A ameaça veio sem meias palavras: US$ 20 mil em dinheiro e mercadorias ou o comerciante seria morto. Ele permanecia desaparecido até o início de fevereiro.
Yi Chen e Xin Mo são apenas duas entre uma série de vítimas do modus operandi da máfia chinesa que atua em São Paulo e segue impondo medo à comunidade oriental que vive na cidade. Extorsões, assim como contrabando de mercadoria e tráfico de pessoas, são velhas práticas desse grupo criminoso que age nas duas tradicionais áreas comerciais da capital. Recentes operações policiais mostram, contudo, que os mafiosos chineses têm expandido sua atuação para novas fronteiras, tanto territoriais como nas modalidades criminosas. Agora, os negócios incluem venda de drogas como metanfetamina, estelionato e até tráfico de armas, e chegaram a bairros nobres da cidade, como os Jardins, onde uma mansão foi transformada em uma boate destinada ao consumo de entorpecentes e à prostituição.
Onde as quadrilhas agem em SP
Mafiosos expandem atuação para fora do centro em casos de extorsão, sequestro e tráfico de drogas
O Metrópoles analisou milhares de páginas de investigações sigilosas, processos judiciais e fez incursões no submundo do crime nas últimas semanas para mostrar os tentáculos da máfia chinesa em São Paulo nesta série especial, dividida em três capítulos. A reportagem se infiltrou em um dos hotéis onde usuários de metanfetamina abastecidos por traficantes chineses praticam o chamado chemsex (sexo químico) e negociou a compra de alguns gramas da droga para rastrear o caminho do dinheiro. No segundo capítulo da série, você vai ver como a transação financeira conecta o grupo mafioso chinês a fintechs da Faria Lima, maior centro financeiro do país, e a integrantes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC.
A apuração também avançou sobre o esquema de lavagem de dinheiro da máfia por meio de comerciantes chineses do Brás, usados como laranjas. O terceiro capítulo conta como a investigação que partiu de um crime rotineiro de estelionato, envolvendo falsas promessas de emprego, chegou a um esquema milionário de tráfico de armas, com modelos usados até mesmo em guerras, após mapear operações financeiras suspeitas. Fotos e conversas encontradas nos celulares dos criminosos levaram a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público de São Paulo (MPSP) a uma empresa que fornecia o arsenal. No local, um galpão na zona leste paulistana, funciona um stand de tiro que era frequentado por chineses e policiais militares.
“Esses fenômenos criminais mais complexos se traduzem em ambientes que atraem todo tipo de atividade econômica ilícita. É um grande hub, é um grande ecossistema, não necessariamente de negócios hierarquizados entre si, mas que se beneficiam das mesmas facilidades, seja para circular recursos, seja para ter um nível de proteção oficial para que não sejam incomodados. Dentro desse contexto, diferentes grupos, como máfias e grupos criminosos organizados, passam a ter um ambiente de interação e relacionamento”, afirma o promotor Fábio Bechara, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MPSP.
Tentáculos da máfia
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Fábio Vieira / Metrópoles
Extorsões, sequestros e assassinatos
Uma prisão à beira de uma rodovia em Itaí, cidade do interior paulista que fica a 300 quilômetros da capital, abriga células de diversos grupos criminosos chineses. Apesar das novas modalidades incorporadas à carteira da máfia, extorsões, sequestros e assassinatos ainda têm presença marcante no rol de crimes cometidos pelos detentos imigrantes. Entre eles, está um dos mais temidos mafiosos estrangeiros do país, condenado a mais de 140 anos por diversos crimes, incluindo o sequestro de Xin Mo, relatado no começo desta reportagem.

Em uma foto antiga, Bo Lin, hoje com 38 anos, aparece ainda jovem, mostrando o dedo do meio para a câmera. Os retratos de sua extensa ficha criminal o exibem mais velho, sempre com o mesmo olhar desafiador, diante de acusações como homicídio, extorsão e sequestro. No caso envolvendo o vendedor de 19 anos, Bo Lin disse que “já havia matado muitas pessoas e que não custaria nada matar mais um”, segundo relato dos pais da vítima.
A tortura psicológica persistiu mesmo depois do pagamento, por meio de visitas intimidadoras à loja da família, na tentativa de impedir que a polícia fosse notificada. A família superou o medo e procurou as autoridades.
O estrangeiro é apontado pela Justiça como membro da quadrilha conhecida como Grupo Bitong, em referência ao seu líder Liu Bitong, de 51 anos, criminoso que ficou quase oito anos foragido e foi preso em dezembro de 2024 pela Polícia Federal, em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela. O bando liderado por ele promoveu uma matança como represália aos que se negavam a ceder às extorsões; entre os alvos das cobranças de dinheiro para poder trabalhar no centro da cidade, constam empresários e até vendedores de capinhas de celular.
Polícia Federal
Liu Bitong é apontado como o líder de grupo mafioso acusado de extorsão e assassinatos em SP
A última prisão de um integrante do grupo mafioso ocorreu no fim de janeiro. Lin Xianbin, de 52 anos, estava na lista de procurados e foi identificado pelas câmeras com reconhecimento facial da prefeitura paulistana enquanto caminhava tranquilamente entre as barracas de camelôs da Rua 25 de Março, no meio da tarde de uma terça-feira. Embora parte do Grupo Bitong tenha sido presa e a quadrilha, dada como desmantelada, levantamento feito pelo Metrópoles revela que, dos 17 integrantes fichados, apenas dois seguem em presídios paulistas, além do líder da quadrilha, detido em uma penitenciária federal, e um quarto membro que cumpre prisão domiciliar em um endereço no centro de São Paulo.
A reportagem obteve todos os boletins de ocorrência envolvendo casos de extorsão e sequestro contra chineses e constatou que houve um aumento no número de registros nos dois últimos anos. Foram 15 casos somente entre 2023 e 2024, ante 21 ocorrências nos nove anos anteriores. Para as autoridades, porém, o número real de vítimas da máfia chinesa é ainda maior, porque boa parte delas não procura a polícia por medo de represália dos criminosos.
Da mesma forma, assassinatos com as mesmas características empreendidas pela máfia chinesa seguiram manchando de sangue as ruas da capital paulista nos últimos anos. Em setembro de 2022, por exemplo, dois homens em uma moto se aproximaram do carro dirigido pelo comerciante chinês Liu Aibo, no Cambuci, região central da cidade, e executaram o motorista à luz do dia. A polícia suspeita que os mandantes sejam da própria comunidade chinesa, mas os autores do crime seguem desconhecidos.
Grupo Bitong da Província de Fujian
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Preso
Egresso
Não localizado pela reportagem
líder

liu bitong
contabilidade

xiu ling chen

yi yong

biu yong liu
recolhe

Lin Xianbin
matadores

bo lin

yong shuai liu

xing wei

kequing wu

wu ke yuang

xu don wang

ou zhou

xiang bin lin

dagui wang

yixiong zheng
Artur Rodrigues / Metrópoles
Prédio cinza na Avenida Senador Queirós funcionou como QG da máfia chinesa
Chinatown
Na vidraça de um prédio na Avenida Senador Queirós, a 700 metros do Palácio da Polícia Civil do Estado, é possível ver o cartaz escrito em chinês: “Igreja Bíblica da Fé”. O aviso se dirige a centenas de chineses que entram e saem do prédio ao longo do dia, entre moradores e pessoas que usam o local como depósito de mercadorias. O movimento já foi usado para camuflar, naquele endereço, o apartamento que funcionava como escritório da quadrilha de Liu Bitong.
No caso do comerciante Yi Chen, o segundo citado no início da reportagem, um carro abandonado pelos sequestradores na mesma avenida onde está o QG do Grupo Bitong é uma das pistas que ligam o crime a essa ramificação da máfia chinesa. A ocorrência segue sob investigação.
Também foi a poucos metros dali que aconteceu uma das ações mais brutais do grupo. Em uma madrugada de janeiro, em 2015, o vendedor de capinhas de celular Zhenhui Lin, de 42 anos, foi alvo de uma emboscada. Ele caminhava com um conhecido pela rua quando três homens armados saíram de um carro preto e cravejaram o corpo de Zhenhui com disparos de calibre 22, um deles no globo ocular direito. Ele foi extorquido pela quadrilha de Liu Bitong e tinha parado de pagar a mensalidade da máfia após ter repassado R$ 150 mil ao grupo.
O promotor Carlos Henrique Prestes Camargo, que investigou a máfia, afirma que esse grupo costumava explorar pessoas que eram da mesma região deles na China, a província de Fujian, no sudeste do país. “Eles se arvoravam nisso para praticar a extorsão. Era muito dinheiro”, disse. Um cálculo feito pela reportagem, com base em depoimentos prestados à Justiça, estima que, com 10 vítimas, em dois anos, a quadrilha levantou quase R$ 3 milhões em extorsão. “Tinha casos que eles pediam R$ 300 mil para vendedor de capinha de celular. Os caras não tinham dinheiro. Tinha que juntar a família inteira pra ajudar”, afirmou o promotor.
A província de Fujian está localizada na faixa litorânea do sudeste da China e concentra uma população de aproximadamente 41,5 milhões de pessoas, tornando-a a 15ª mais populosa entre as 33 províncias do país. Além do tradicional mandarim, na região são faladas as línguas Min e o idioma Gan.
Muitos desses gangsters saíram de sua terra natal e migraram para outras regiões do mundo, levando consigo a prática de crimes violentos. Apurações mostram que criminosos de Fujian fugiram da Justiça local e se instalaram em países americanos, como Porto Rico, Argentina e Brasil.
No Brasil, criminosos vindos de Fujian se instalaram em São Paulo, sobretudo na região central da cidade, que concentra grandes centros comerciais. O chamado Grupo Bitong, tido pela Polícia Civil e pelo Ministério Público como uma ramificação da máfia chinesa, passou a extorquir comerciantes chineses, sob pena de espancamentos, sequestros e até mesmo morte.
Foi necessário que o Consulado Chinês em São Paulo se reunisse com a comunidade vitimada para incentivá-la a denunciar os crimes à polícia. O empenho das dezenas de vítimas e testemunhas, que prestaram depoimento como protegidas pela Justiça, ajudou a colocar alguns mafiosos na cadeia. No entanto, como muitos deles já cumpriram pena e estão nas ruas, as vítimas podem voltar a cruzar com seus algozes.
Na prisão em Itaí, no interior paulista, membros do Grupo Bitong e de outras ramificações da máfia chinesa mantêm um comportamento discreto. Segundo fontes do sistema prisional, eles passam o tempo assistindo a novelas, jogando entre si e fumando compulsivamente, sem interagir com detentos de fora do núcleo. Relatórios da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) mostram que eles estudam, trabalham e, por isso, frequentemente ganham direito à remissão de suas penas.
Atualmente, 27 chineses cumprem pena no presídio destinado a imigrantes. Além de Bo Lin, outros cinco deles respondem por crimes de extorsão e sequestro. Kuang Yngwei, Li Qining e Wenxuan Zhu, por exemplo, foram acusados de participar de um sequestro cinematográfico de uma empresária chinesa em julho de 2021. Segundo a denúncia do Ministério Público paulista, a vítima teria intermediado uma transação de Wenxuan Zhu e pessoas desconhecidas. O homem entendeu não ter recebido o que deveria e teria passado a cobrar cerca de R$ 2 milhões. Como a mulher não pagou, de acordo com a acusação, Zhu decidiu sequestrá-la.
O arrebatamento da vítima aconteceu por volta das 22h, dentro de uma unidade do McDonald’s, em Carapicuíba, na Grande São Paulo. O grupo, que também contava com três brasileiros, carregava uma espingarda calibre 12 e um fuzil, e colocou a mulher em um Pajero. O plano só deu errado porque uma pessoa percebeu a abordagem e chamou a polícia, que passou a fazer buscas e encontrou a quadrilha. Dois dos detidos na época estão no regime semiaberto e, por isso, ganharam acesso às ruas.
Embora os casos recentes tenham as mesmas características dos crimes atribuídos ao Grupo Bitong, a atuação da quadrilha parece estar fora do radar das autoridades. Uma fonte da Polícia Civil informou ao Metrópoles que a corporação trata os casos de extorsão de forma independente, e que não há investigações em andamento para apurar a presença da máfia chinesa em São Paulo. Questionada, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) não se posicionou até a publicação desta reportagem.
Luiz Vassallo / Metrópoles
Ladeira Porto Geral com Rua 25 de Março: comerciantes chineses da região sem vítimas de grupos
O que dizem os acusados
Os chineses acusados de extorsão, sequestro e homicídio citados nesta reportagem negaram os crimes à Justiça. Nos diversos processos analisados, uma reclamação comum dos réus refere-se ao “despreparo” do Judiciário brasileiro para entender a versão dos estrangeiros, devido à falta de tradutores.
No caso do crime em Carapicuíba, os acusados chineses afirmaram à Justiça que eram inocentes e citaram pontos como falhas na acusação e contradições da vítima. Já os brasileiros alegaram que foram apenas contratados para fazer segurança. Os argumentos não convenceram e todos acabaram condenados a mais de 11 anos por sequestro.
Bo Lin, condenado a mais de 140 anos de reclusão, afirmou em juízo que acredita estar preso “em razão de dívidas provenientes de negócios”, e não das mais de 10 condenações por extorsão. Trabalhador no atacado de relógios, na Feira da Madrugada, do Shopping 25 de Março, como alegou à Justiça, o chinês disse que uma das testemunhas da polícia, utilizada como intérprete para as vítimas que não falam português, é na verdade o líder da máfia chinesa em São Paulo.
Liu Bitong, apontado como mandante de homicídios e extorsões cometidos pelo Grupo Bitong, nem sequer se manifestou sobre as acusações a que responde.