O Estado Democrático de Direito, consagrado na Constituição de 1988, funda-se no respeito à soberania popular, na separação entre religião e política e na garantia das liberdades individuais. No entanto, a crescente transformação de púlpitos em palanques políticos por líderes de grandes denominações religiosas representa um risco concreto a esse modelo. A fé, que deveria ser espaço de acolhimento e espiritualidade, vem sendo instrumentalizada para fins eleitorais e ideológicos, distorcendo a essência da liberdade religiosa.
A Constituição é clara ao assegurar a liberdade de crença (art. 5º, VI) e ao vedar que o Estado estabeleça relações de dependência ou aliança com igrejas (art. 19, I). Quando lideranças religiosas utilizam sua autoridade espiritual para induzir votos e atacar instituições, extrapolam os limites do papel pastoral e afrontam o princípio da laicidade. O púlpito deixa de ser espaço sagrado para se tornar um canal de propaganda política e de disseminação de ataques ao regime democrático, configurando verdadeiro abuso de poder religioso.
Exemplo emblemático é o do autodenominado “paxtor” Silas Malafaia, que há anos se apresenta como acima da lei, usando sua visibilidade religiosa para atacar sistematicamente o Supremo Tribunal Federal e outros pilares da República. Recentemente, foi surpreendido pela Polícia Federal, que apreendeu seus celulares e pertences em investigação sobre a participação em atos antidemocráticos. A cena revela que, apesar de sua retórica de imunidade, nenhum líder está acima da Constituição e das instituições democráticas.
O problema não se resume a um indivíduo, mas a um sistema que confunde fé com poder político. O discurso travestido de religião tem legitimado projetos autoritários e narrativas golpistas, como se observou nos atos de 8 de janeiro de 2023. Ao pregar que a política é extensão da missão divina, certos líderes deslegitimam a pluralidade democrática e criam uma massa de fiéis predisposta a aceitar práticas contrárias à ordem Constitucional. É a fé sendo sequestrada como instrumento de manipulação.
A Justiça Eleitoral já reconhece a gravidade do abuso do poder religioso, equiparando-o ao abuso de poder econômico ou político, quando a influência espiritual desequilibra a disputa. Além disso, a Lei nº 14.197/2021 tipificou como crime a tentativa de abolir, com violência ou grave ameaça, o Estado Democrático de Direito. O ordenamento jurídico não pode ser complacente com práticas que corroem os fundamentos da democracia sob o pretexto de fé.
É hora de reafirmar que púlpito não é palanque. A espiritualidade não pode ser degradada em moeda política, e a democracia não pode ser sacrificada em nome de um messianismo que pretende submeter a Constituição a interesses particulares. Defender o Estado Democrático de Direito é também proteger a religião de sua instrumentalização e lembrar, como no caso Malafaia, que quem ataca as instituições cedo ou tarde terá de enfrentá-las.
Drª Marlene Reis
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