No último réveillon, um empresário que levou seus convidados em um jato privado para Trancoso, no sul da Bahia, postou nas redes sociais que havia distribuído seringas de um medicamento para diabetes que também promove a redução do apetite. O relato ilustra como o uso dos emagrecedores tem se disseminado, muitas vezes com propósitos diferentes de sua prescrição original.
Drogas como Ozempic, da dinamarquesa Novo Nordisk, e Mounjaro, do laboratório americano Eli Lilly, indicados para perda de peso, controle da diabetes ou prevenção de eventos cardiovasculares recorrentes, têm também um efeito colateral complexo na sociedade: a revalorização de um ideal de magreza. Se esforços inclusivos haviam feito com que a indústria da moda e da publicidade procurassem não se fixar apenas em figuras esguias, o uso desses medicamentos tem chamado atenção de especialistas de várias áreas, da saúde à moda.
“Tenho sentido no dia a dia, conversando com as pacientes mais novas, adolescentes, adultos e jovens, que esse padrão de beleza da magreza extrema tem voltado com mais força”, afirma Marcus Zanetti, professor da Faculdade Sírio-Libanês.
Uma observação semelhante é feita pela consultora de moda Costanza Pascolato. “Nos últimos desfiles, eu observei um exagero de magreza. Tem muita transparência e umas modelos que são uns esqueletinhos por baixo. Estou falando do mundo, não só do Brasil”, diz Pacolato. “No universo da moda, a gente sabe que, mesmo antes do Ozempic, as modelos faziam uns regimes absurdos, inclusive com riscos para a saúde. Acho um erro absoluto essa valorização de extremos.”
Essa classe de medicações não foi desenvolvida para uso num curto espaço de tempo nem “para perdas de peso de pequena monta ou finalidades estéticas”, diz o presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), Paulo Miranda. “São medicações desenvolvidas para o tratamento de diabetes do tipo 2 e para o tratamento da obesidade, que passaram por programas de desenvolvimento muito bem desenhados, justamente para garantir sua eficácia e segurança.”
O importante, ressalta, é que as pessoas não vejam o tratamento da obesidade e do sobrepeso como algo estético e de menor impacto sobre a saúde. “Hoje sabemos que o tratamento da obesidade leva a benefícios muito importantes. Seja ele baseado apenas nas mudanças de hábito de vida ou somado ao tratamento farmacológico ou até cirúrgico. Quando bem indicadas e monitoradas por médicos, essas terapias têm um impacto muito positivo na qualidade de vida e no tempo de vida das pessoas.”
Tanto o Ozempic como o Mounjaro […] fazem efeito apenas enquanto você está tomando”
— Bruno Halpern
Os dois medicamentos em voga – Ozempic e Mounjaro -, muito conhecidos e difundidos nas redes sociais por celebridades, e constantemente comentados em grupos de conversa, representam um divisor de águas no tratamento da obesidade. A Novo Nordisk é a líder global no crescente mercado de medicamentos para diabetes e não há genéricos aprovados, até o momento, de semaglutida, o princípio ativo do Ozempic.
O Mounjaro ainda não está à venda no Brasil e não existe previsão de lançamento. Em agosto deste ano, o laboratório publicou uma carta aberta para informar sobre os “riscos graves” de utilizar medicamentos falsificados que alegam ter o princípio ativo do Mounjaro, a tirzepatida. “Além disso, vemos com preocupação o uso de medicamentos para fins estéticos, ou sem cuidados médicos adequados”, diz a Lilly do Brasil em nota ao Valor. Estima-se que o custo mensal do medicamento, se importado oficialmente, chega a R$ 10 mil.
Há vários medicamentos de semaglutida com finalidades diferentes: Ozempic, para diabetes tipo 2, Wegovy, para obesidade e sobrepeso, e Rybelsus, uma versão oral para diabetes tipo 2. A faixa de preços varia de R$ 700 a mais de R$ 1 mil – conforme a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).
De acordo com as normas da Anvisa, todos devem ser vendidos com apresentação de receita e tarja vermelha. A endocrinologista Priscilla Mattar, vice-presidente da área médica da Novo Nordisk no Brasil, ressalta ao Valor: “A empresa não endossa o uso fora da indicação, o tratamento deve sempre ser orientado pelas recomendações fornecidas pelo médico responsável e deve basear-se em uma avaliação individual das necessidades do paciente”.
Embora mais baratos do que o Mounjaro, esses medicamentos à venda no Brasil ainda são restritos a pessoas de poder aquisitivo mais alto. Daí o fato de os médicos e laboratórios apoiarem as iniciativas para que sejam incluídos no SUS, o Sistema Único de Saúde, e se tornem acessíveis à população que necessita e não tem condições de pagar.
“A gente acredita que entre 25 e 30% da população brasileira está com obesidade. Com sobrepeso, quase 60%”, afirma Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), que daqui a dois anos assumirá também a presidência da Federação Mundial para a Obesidade. “A proporção ainda é menor em crianças e adolescentes, mas o ritmo de crescimento é maior nessa faixa, especialmente em classes sociais mais baixas. O que torna ainda mais perversa essa questão das medicações usadas sem prescrição porque, nesse caso, quem está usando é quem ‘precisava’ menos.”
Isso leva, segundo Halpern, a aumentar a desigualdade. “As pessoas que mais precisariam não vão ter acesso. Acho que esse é um ponto importante. Falo da importância das medicações, mas a gente não pode jamais deixar de entender o lado social.”
Entre 2013 e 2022, a obesidade infanto-juvenil, além de poder afetar a saúde dos jovens, teve impacto ao SUS de R$ 225,7 milhões. Os dados são do Instituto Desiderata, Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A Abeso há 38 anos advoga pela causa do controle da obesidade. Hoje nos congressos de cardiologia e diabetes se fala bastante da obesidade, principalmente porque há novos tratamentos.
Nos tratamentos anteriores a essa classe de medicamentos, a média de perda era entre 5% e 10% do peso corporal. Para a maioria das pessoas, era insuficiente e, com frequência, isso levava ao abandono do tratamento por falta de estímulo. “Com novos tratamentos, estamos chegando a 15% na média e até mais de 20% com o Mounjaro. Existe até um grande número de pessoas atingindo 30% de perda de peso, o que é igual a uma cirurgia bariátrica”, diz Halpern.
Há outros ganhos que merecem atenção, afirma o presidente da Abeso. “Esses tratamentos estão mostrando muito mais do que perda de peso em si, mas benefícios adicionais como redução do infarto, da apneia do sono e de uma série de doenças associadas à obesidade, com um impacto direto sobre a saúde.”
Quando prescrito adequadamente, os benefícios são positivos, dizem especialistas. Seus objetivos não são estéticos, com foco em algum padrão de beleza. Segundo um estudo publicado na revista científica “Nature” em 2022, que levou em consideração os efeitos da semaglutida ao longo de dois anos, a perda de peso média no período foi de 16,7%, comparada com 0,6% para o grupo de participantes tratados com placebo. Efeitos adversos que provocaram a interrupção do tratamento atingiram parcelas de 5,9% para os que tomaram semaglutida e 4,6% para o grupo do placebo. O efeito adverso mais comum foram desordens gastrointestinais, reportados por 82,2% dos tratados com semaglutida e 53,9% dos que tiveram placebo.
No entanto, a automedicação tem sido uma preocupação. Em conversa com o Valor, uma profissional formada pela Fundação Getulio Vargas, alta e esguia, disse ser usuária do Ozempic: “Pode apostar que todas as pessoas magras como eu, que você conhece, tomam”, disse ela, que preferiu não se identificar. Sua afirmação revela uma tendência de usuários que recorrem à medicação para perder pouco peso em busca de um padrão de beleza.
A publicitária Carolina Achcar, de 46 anos, que tem uma história complexa com o uso de emagrecedores, é um exemplo. Ela mede 1,71 metro e não gosta de pesar mais do que 60 quilos. “O problema é que a palavra regime dá fome, né? Você, imediatamente, só pensa nas suas restrições… pão, pão, pão! E o Ozempic entra aí, para acabar com aquela compulsão, que é pura histeria.”
Achcar nunca fez dieta e não gosta de fazer atividade física. Ela chegou a tentar remédios genéricos para emagrecer, mas teve crises de vômito e desarranjo intestinal que a levaram a ser internada duas vezes na mesma semana. Agora, está tomando Ozempic pela segunda vez e tenciona perder 4 quilos.
Para o presidente da Abeso, há muita lenda no que se diz: “Tanto o Ozempic como o Mounjaro são medicamentos de uso contínuo que fazem efeito apenas enquanto você está tomando”. E compara a outros remédios de uso diário como os utilizados para controlar pressão, hipotireoidismo ou colesterol. “Há diferenças entre os efeitos desses emagrecedores, mas todos devem ser tomados para sempre.”
Eles são especialmente indicados para pessoas que têm comorbidades como hipertensão arterial ou colesterol alto. “Eu tenho os dois”, diz a diplomata Mariana Lobato, de 42 anos, que perdeu 10 quilos em seis meses fazendo uso do Ozempic. “Minha médica insistia muito para eu emagrecer para melhorar a pressão alta e o colesterol. Eu não estava conseguindo, então, ela receitou uma dose baixa.”
Uma restrição ao uso desses medicamentos é seu alto custo. No passado, eram utilizadas outras medicações para tirar o apetite e algumas delas foram até retiradas do mercado há mais de uma década em função dos malefícios que provocavam.
A possibilidade de adoção desses medicamentos pelo SUS também é bem-vista pelo presidente da SBEM. “Temos uma sociedade científica de pessoas envolvidas com o tratamento de obesidade e diabetes e sempre queremos ampliar as opções terapêuticas e garantir maior acesso ao tratamento para a população em geral.”
No caso da incorporação pelo SUS, até por serem medicações com um custo elevado, ela será feita acompanhada por protocolos que analisem o custo-efetividade do ponto de vista de investimento do setor público de saúde, privilegiando pessoas que tenham maior comprovação científica de benefícios com seu uso.
No entanto, segundo o Ministério da Saúde informou ao Valor, atualmente não há demanda para avaliação de medicamentos para tratamento de obesidade pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). E para que qualquer tecnologia seja incorporada ao SUS é necessário que passe pela avaliação da Conitec.
Por enquanto, o SUS não oferece tratamento medicamentoso. “Apenas atende pacientes com obesidade com medidas como atividades físicas, alimentação saudável e suporte psicológico. Em casos específicos, realiza a cirurgia bariátrica pelo SUS.”
Quanto ao fato de esses princípios ativos estarem sendo usados por pessoas magras, que não necessitam, Miranda, da SBEM, faz questão de pontuar: “Para mim, um ponto muito importante é dizer que a gente está vendo, inclusive, que o uso excessivo e desnecessário está levando até mesmo ao desabastecimento desses medicamentos. Esse é outro efeito perverso da compra sem prescrição médica. A prescrição é fundamental justamente porque visa restringir o acesso apenas às pessoas que realmente precisam”.