Fachada do STF 25 de janeiro de 2025 | 10:33
STF tem ‘legislado’ mais ao julgar o que considera omissões do Congresso e do governo; entenda
O Supremo Tribunal Federal (STF) intensificou, nos últimos cinco anos, a atuação em casos nos quais considera que Executivo e Legislativo deixaram de agir e cumprir deveres previstos na Constituição, como a criação de leis necessárias para regulamentar direitos ou a implementação de políticas públicas. Levantamento do Estadão mostra que, desde 2019, a Corte declarou 78 “omissões inconstitucionais”, superando as 62 decisões registradas entre 1990 e 2018. Além disso, segundo especialistas consultados pela reportagem, a Corte adotou uma postura mais expansiva na atual composição, que não tem se limitado a apontar omissões, passando a definir ela própria regras a serem adotadas em determinados casos.
Ainda que reconheçam que o aumento desses processos também reforce o papel do Supremo na garantia de preceitos constitucionais, esses especialistas apontam que a atuação do STF acirra as tensões com os demais Poderes e pode até gerar retaliações políticas, já que o tribunal amplia seu campo de atuação para assumir funções que caberiam a parlamentares e governantes — em alguns casos, extrapolando os limites originalmente previstos na Constituição. Esses juristas pregam que o STF deferia agir com “autocontenção” e ter “cautela” ao pautar esse tipo de julgamento.
Procurada, a Câmara dos Deputados afirmou que “não se posiciona sobre ações legislativas da própria instituição nem sobre iniciativas de outros Poderes”. O Senado, por sua vez, que responde pelas demandas do Congresso Nacional, recomendou que o tema fosse tratado diretamente com as lideranças parlamentares. O STF e o governo federal não se manifestaram.
O aumento desse tipo de ação não apenas reflete a crescente judicialização de temas políticos, mas também expõe uma estratégia recorrente entre parlamentares: evitar pautas que possam gerar custos políticos e desgastes em suas bases eleitorais. O mesmo ocorre quando o STF intervém em questões ligadas ao Executivo, levantando questionamentos sobre os limites de sua atuação na implementação de políticas públicas – função originalmente atribuída aos governos.
Uma ação por omissão inconstitucional pode ser ingressada por partidos políticos e outras entidades no Supremo, que pode determinar que os Poderes Legislativo e Executivo regulamentem questões previstas na Constituição. Em alguns casos, com base na mudança de interpretação adotada pelos ministros nos últimos anos, o STF passou a estabelecer regras provisórias até que o Congresso legisle sobre o tema e determinar a adoção de políticas públicas pelos governos.
Em 2023, por exemplo, o Supremo determinou que, até junho deste ano, o Congresso redistribua as cadeiras de deputados federais com base na população de cada Estado. Já em 2024, os ministros decidiram que os parlamentares devem criar uma lei que garanta o pagamento extra a trabalhadores urbanos que atuam em áreas de risco, direito previsto na Constituição que, por falta de regulamentação, não é aplicado.
Segundo dados do painel Corte Aberta, do STF, 140 ações do tipo já foram aprovadas pelo Plenário e pelas Turmas desde a promulgação da Constituição de 1988. Para o jurista e pesquisador do Insper Diego Werneck, o aumento nos julgamentos de omissão nos últimos anos reflete a percepção de que os Poderes não estão cumprindo suas funções, além de evidenciar uma mudança na forma de decidir do Supremo e no uso cada vez mais frequente desse mecanismo por partidos e entidades.
Werneck explica que, antes, o STF apenas reconhecia a omissão do Legislativo e do Executivo, estabelecendo um prazo para a regulamentação, conforme previsto na Constituição. Nos últimos anos, porém, os ministros passaram a adotar uma atuação mais expansiva, contrastando com composições anteriores da Corte, que mantinham uma postura mais contida e restritiva – típica de períodos de transição e consolidação política, como o vivido pelo País após a redemocratização.
“Essa atuação mais expansiva pode ser problemática para o Supremo, tanto em termos de legitimidade quanto na relação com os atores políticos. Os ministros deveriam adotar uma postura mais restritiva, mas, nos últimos anos, têm ampliado cada vez mais a interpretação de seus próprios poderes constitucionais”, explica.
Um exemplo foi o julgamento de 2007 sobre o direito à greve dos servidores públicos. Na ocasião, os ministros inovaram ao aplicar regras provisórias para essa classe, até que uma lei específica fosse aprovada pelos parlamentares. Em julgamentos anteriores sobre o tema, o Supremo, então composto majoritariamente por ministros da década de 1990, limitava-se a declarar a omissão do Legislativo, sem apresentar regras temporárias ou diretrizes.
A pandemia também contribuiu para o aumento desse tipo de processo, conforme explica a cientista política e pesquisadora em Harvard Gabriela Fischer. Entre 2020 e meados de 2022, o Supremo julgou sete processos relacionados a omissões inconstitucionais durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Destaca-se a decisão que determinou o pagamento de uma renda básica às pessoas vulneráveis, após o STF concluir que o governo havia sido omisso na adoção de medidas essenciais para mitigar os impactos da crise, mesmo havendo uma lei sobre o tema. A decisão foi tomada em resposta a uma ação movida pelo partido Rede Sustentabilidade.
Uma vez que, para ser aprovada, esse tipo de ação exige apenas a comprovação de que o tema está previsto na Constituição, mas ainda não foi regulamentado, o mecanismo tem se mostrado eficaz para que entidades e partidos pouco representados no Congresso garantam direitos sociais e de minorias, analisa Gabriela. “O cálculo político que fazem é que as chances de vitória são maiores no STF do que no Congresso”, diz. Ela ainda menciona que, nos últimos anos, houve uma flexibilização das classes processuais que o Supremo aceita para julgar os casos, o que ampliou o uso desse mecanismo em diferentes áreas, como questões ambientais e direitos de populações vulneráveis, incluindo os indígenas.
Alguns dos temas desse tipo de ação, como a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo e decisões sobre segurança pública, são exemplos do que podem provocar a retaliação do Congresso, por serem caros às bases eleitorais dos parlamentares — especialmente em um Congresso de maioria conservadora. “Em muitos casos, as pautas trazem custos políticos aos parlamentares que preferem não deliberar sobre as matérias. Em outros, não há incentivo ou pressão eleitoral suficiente a ponto de ser priorizado”, explica Gabriela.
A pesquisadora cita a decisão de 2023 que determinou que o governo federal elaborasse um plano para combater a superlotação nos presídios brasileiros, resultado de uma ação iniciada em 2015. Outro caso emblemático ocorreu em 2020 e 2022, quando a Corte impôs medidas para reduzir a letalidade em operações da Polícia Militar em comunidades do Rio de Janeiro, incluindo a obrigatoriedade do uso de câmeras corporais nas fardas e viaturas — regras que continuam em vigor.
Embora essas decisões tratem da inércia do Executivo, em esfera nacional e estadual, ambas geraram reações de congressistas. Na época, os parlamentares criticaram a decisão do Supremo de limitar a ação policial no Rio, entre eles o atual deputado federal Gilvan da Federal (PL-ES). “Como policial, eu digo que o problema do nosso País não é a polícia, é certos tipos de deputados que tem aqui, defensor de bandido, de senadores e de ministros do STF. […] Bando de frouxo, covarde, com poucas exceções, nós sabemos disso, que sequer tem coragem de colocar um impeachment de ministro do STF”, disse Gilvan na ocasião.
Em outubro do ano passado, o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL-RJ), voltou a criticar a medida do STF. “Enquanto a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) continuar, ficamos limitados e o crime organizado segue ganhando forças”, disse em entrevista à TV Globo. A reportagem procurou a assessoria do governo do Rio de Janeiro, mas não obteve retorno até a publicação dessa reportagem.
O pesquisador e jurista Shandor Torok destaca que, em alguns casos, mesmo com a omissão deliberada para evitar o ônus político, congressistas fazem “jogo de cena” criticando publicamente os ministros por julgarem as demandas desse tipo que chegam à Corte. Para ele, mesmo que haja esse cálculo político e a necessidade de garantir os direitos impressos na Constituição, o STF precisa ter “cautela” em colocar esse tipo de julgamento na pauta. “Querendo ou não, estão lidando com questões que caberiam ao Legislativo e ao Executivo.”
Crise de funcionalidade
Para o jurista David Metzker, o aumento dos processos por omissão inconstitucional, somado à interpretação mais expansiva adotada pela atual composição do STF, tem levado a Corte a ocupar espaços que caberiam ao Legislativo e ao Executivo, intensificando as tensões entre os Poderes.
“Esse protagonismo gera tensões entre os Poderes, criando fissuras institucionais, já que o STF passa a ocupar um espaço que, em tese, deveria ser do Legislativo. Isso pode desencadear o chamado efeito backlash (”retaliação”, em inglês), com reações também da sociedade, enfraquecendo a confiança nas instituições e alimentando narrativas sobre uma suposta judicialização excessiva”, explica, acrescentando que esse cenário também reflete uma crise de funcionalidade entre os Poderes.
Para reduzir as tensões entre os Poderes, Shandor defende a necessidade de aprimoramento da Corte tanto em decisões que afetam a vida política quanto em outros segmentos, a fim de recuperar a percepção de legitimidade. Como exemplo, ele cita as reformas regimentais promovidas pela então presidente Rosa Weber em 2022, que restringiram as decisões monocráticas.
“O uso expansivo dos poderes pelos ministros reforça a percepção de que a Corte extrapola as atribuições do Legislativo e do Executivo, comprometendo sua imagem”, diz.
O pesquisador sugere que os próprios ministros adotem uma postura de autocontenção, evitando exposição desnecessária no debate público, aumentando a transparência e garantindo maior coerência na jurisprudência, independentemente do contexto político.
“Os ministros precisam ter mais cuidado com o ‘reservatório de boa vontade’, ou seja, o capital político e institucional que o tribunal acumula ao longo do tempo. Se esse saldo se esgota, as tensões entre os Poderes tendem a se intensificar”, completa.
Como mostrou o Estadão, nos últimos anos, o STF proferiu mais de 600 decisões que, de alguma forma, impactaram os mandatos de parlamentares. No Congresso, uma série de propostas têm sido apresentadas por deputados federais e senadores sugerindo a limitação dos poderes da Corte. Além disso, mais de 90 pedidos de impeachment contra ministros foram registrados desde 2016.
Hugo Henud e Karina Ferreira/Estadão Conteúdo