Reportagem ouviu sete autoridades que atuam ou atuaram em casos envolvendo facção 20 de setembro de 2025 | 09:11
Vida de quem investiga o PCC inclui medo constante, veto a shopping e escolta escondida para parente
Um policial militar havia acabado de ser nomeado para uma função na cúpula da corporação quando veio o alerta: seu nome e o de um parente —assim como a cidade onde essa pessoa estudava— apareceram em conversas interceptadas pelo setor de inteligência durante investigação contra o PCC (Primeiro Comando da Capital). Com isso, decidiu se precaver.
Conversou com esse familiar e combinou que enviaria um policial para escoltá-lo. O acordo era garantir que o agente não aparecesse para evitar uma presença ostensiva. À exceção do parente, ninguém da república de estudantes onde morava jamais soube da proteção, que permaneceu ali, numa viatura descaracterizada, durante um ano e meio.
“Uma tensão total. Algo horrível, horrível”, disse esse agente à Folha ao relembrar o caso.
Ser ameaçado ou mesmo atuar em casos envolvendo a facção significa também trabalhar num estado permanente de alerta, segundo pessoas que passaram por essa situação.
Assim viveu o ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo Ruy Ferraz nos últimos anos. Ele foi assassinado na última segunda-feira (15), vítima de uma emboscada em Praia Grande, no litoral paulista. A Secretaria de Segurança Pública estadual afirma que o PCC tem participação no ataque.
A facção tem histórico de atentados a autoridades. Em 2003, o juiz Antonio José Machado Dias foi morto a tiros por integrantes do PCC em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Em 2005, por sua vez, membros da facção assassinaram o ex-diretor do Carandiru José Ismael Pedrosa.
A Folha conversou com sete autoridades que lidam ou lidaram com a organização para ouvir relatos sobre como o combate a facções transformou suas vidas. As entrevistas aconteceram de quarta (16) a sexta-feira (19). Todos pediram para não terem seus nomes e outros detalhes divulgados por questões de segurança.
Em comum, todos atuam ou atuaram longe dos holofotes. Um deles é diariamente acompanhado por uma equipe de escolta.
Não há legislação específica que regulamente pedidos de proteção continuada. No caso de membros da Polícia Civil, como delegados, cabe ao secretário de Segurança Pública autorizar a medida. A promotores de Justiça, por sua vez, ao chefe do Ministério Público estadual.
Como os requerimentos não são padronizados, cada órgão tem um procedimento diferente. Ruy Ferraz, por exemplo, não tinha —o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou ele que nunca pediu proteção depois de se aposentar.
O governo paulista não divulga quantas pessoas atualmente recebem escolta no estado, nem quantos policiais são usados nessa função.
O agente que atuava na cúpula da PM, por exemplo, tinha direito a escolta, o que por si só muitas vezes não bastava.
Em mais de uma ocasião, disse à Folha, deixava um local com determinado veículo —na época não fazia uso de carro blindado, afirmou— e trocava de automóvel duas quadras depois, num estacionamento particular onde uma equipe de policiais já estava a postos.
O objetivo era evitar identificação posterior, numa eventual emboscada. Sempre havia a chance, afinal, de que criminosos escondidos em frente à garagem de onde saiu repassassem informações sobre o veículo a terceiros.
Uma autoridade que já foi jurada de morte pelo PCC afirmou à Folha que a atenção redobrada deve prevalecer mesmo em épocas que aparentam ser tranquilas. Quando menos se espera, disse ele, é que atentados tendem a ocorrer.
Essa autoridade disse que certa vez estava num restaurante no interior de São Paulo, numa cidade onde segundo ele “todo mundo conhece todo mundo”, quando estranhou um grupo de pessoas que havia entrado no estabelecimento.
Ele disse ter pensando que aqueles seriam os últimos momentos de sua vida. Ligou para a Polícia Militar, que imediatamente mandou uma equipe do Baep (Batalhão de Ações Especiais da Polícia) até o local.
A viatura chegou em questão de minutos. Mas o alarme era falso: as pessoas estranhas eram, na verdade, técnicos de uma operadora que viajaram até aquele município para consertar cabos de telefonia.
Ele disse que o importante “é não baixar a guarda”, evitar dirigir aos mesmos lugares nos mesmos horários e contornar qualquer espécie de rotina.
Isso significa também recusar telefonemas de desconhecidos. Essa autoridade afirmou que só atendeu à ligação da Folha porque estava ao lado de integrantes do setor de inteligência que imediatamente buscaram informações sobre o número que fazia contato.
O aceite veio quando da confirmação de que o telefone estava vinculado a um jornalista.
A mesma desconfiança vale ao uso das redes sociais, disse à reportagem um promotor que atuou por mais de uma década em um núcleo do Gaeco (Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado) e participou de operações contra integrantes da facção no interior.
Ele diz que a cautela se deve não apenas pelo risco à própria integridade. Segundo ele, criminosos buscam também eventuais situações que desabonem ou desmoralizem aqueles que os investigam.
Um delegado de polícia à frente de delegacia especializada afirmou que vê redução nas ameaças contra autoridades no interior de São Paulo.
Ele disse que isso se deve ao fato de que o PCC tem terceirizado a gestão de pontos de droga, numa espécie de franquia, e focado em operações mais lucrativas como o tráfico internacional. Antes, segundo ele, intimidações vinham das chamadas “células” da facção.
Ainda hoje, porém, mantém procedimentos preventivos. Principalmente quando viaja em estradas. “Quando a gente tem uma situação mais delicada eu venho com um armamento mais pesado. Pego um fuzil, trago o meu colete.”
Em 2012, quando o PCC deflagrou uma onda de ataques que vitimou mais de cem policiais militares em São Paulo, setores de inteligência da Polícia e do Ministério Público encaminhavam boletins diários sobre locais onde potenciais atentados poderiam ocorrer.
Atuar em cidades menores impõe também restrições adicionais. Não foram poucas as vezes em que disse ter encontrado em supermercados, por exemplo, pessoas ligadas à facção que havia prendido dias antes. Hoje, esse delegado evita ir a shoppings ou qualquer outro lugar com grande circulação de pessoas.
O anonimato proporcionado a quem mora na Grande São Paulo, de qualquer forma, não elimina riscos. Um promotor do Gaeco que atuou em operações que miravam a asfixia financeira do PCC disse à Folha que há métodos adicionais de precaução.
Ele jamais se senta de costas para a porta de um restaurante, por exemplo. “Você vê que o negócio está funcionando quando a própria família passa a dispensar essas cadeiras”, afirmou. Também não cadastra seu endereço pessoal em sites ou estabelecimentos.
Isso não impediu que um integrante da facção criminosa afirmasse a esse promotor que sabia onde ele morava. Mas ele diz que há uma linha tênue entre saber até que ponto uma ameaça efetivamente pode prosperar. Muitas vezes, diz, a intenção dos criminosos é desgastar o titular da ação penal a ponto de afastá-lo do processo.
André Fleury Moraes, Folhapress
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